‘Se eu fosse branca, não me abordaria’, diz mulher que acusa funcionário de racismo

Maria Angélica, 54, usava turbante, quando foi abordada em farmácia de Salvador

Por Bruno Wendel, no Correio 24 horas

Foto: Geledés 

Primeiro foi preciso recuperar a autoestima para então tornar a sua dor pública. “Se eu fosse uma mulher branca de turbante, ele não me abordaria”, diz Maria Angélica Calmon, 54 anos, assessora de formatura e eventos, que acusa um funcionário da farmácia Drogasil do Salvador Shopping de racismo.

Maria Angélica conta que estava com a neta de 7 anos, quando um funcionário da farmácia a abordou alegando que uma câmera da loja havia registrado o momento em que ela teria saído do estabelecimento sem pagar por um produto. Apesar de ter negado a acusação, ela teve que passar pelo constangimento de abrir a bolsa na praça central do shopping para provar que era inocente.

“Abri a bolsa, coloquei tudo no chão, de forma que ele pudesse ver todo o conteúdo. Quando ele viu que não tinha nada, disse para mim: ‘Não precisava disso’, e saiu em disparada”, contou ela, que prestou queixa na 16ª Delegacia (Pituba).

O fato aconteceu no dia 17 de abril, mas somente no último domingo (5), Maria Angélica tornou o caso público, postando um texto nas redes sociais em que demonstra a sua indignação. “Esperei passar o susto, melhorar o meu estado emocional, recuperar a minha autoestima, que estava em frangalhos, para compartilhar esta tragédia racista e caluniosa que aconteceu comigo e a minha neta de 7 anos”, declarou.

Abordagem
Ao CORREIO, Maria Angélica contou que, no dia 17 de abril, por volta das 19h, entrou na farmácia para encontrar a mãe, a filha e a neta. “Elas compravam remédios de uso diário da minha mãe, que tem 86 anos, e sofre de pressão alta e problemas cardíacos. Enquanto elas compravam, fiquei olhando alguns hidratantes. Quando já se dirigiam ao caixa para efetuar o pagamento, fui ao encontro delas. Saímos da Drogasil, fizemos um lanche e depois fomos ao parque infantil, onde iria levar a minha neta para brincar”, relatou.

Ela diz que, por volta das 21h, foi abordada por um funcionário da farmácia. “Do nada, fui abordada por um rapaz alto, de pele clara, que se apresentou como Willam, funcionário da Drogasil, dizendo que furtei um hidratante da farmácia. Inicialmente, achei que era uma brincadeira, uma pegadinha de algum conhecido. Ainda falei para ele que era uma brincadeira de mau gosto, mas ele disse que não, que tinha certeza, pois tinha me visto através das câmeras da farmácia”, contou.

Maria Angélica disse que, na hora da abordagem, a neta ficou em estado de choque. “Minha neta estava apertando a minha mão com os olhos esbugalhados de medo. Perguntei para o sujeito se ele tinha ciência de que estava constrangendo a mim e a minha neta, por algo que tinha certeza absoluta de não ter feito, e ele tornou a repetir: ‘Nós vimos nas câmeras’. Olhei para os lados e não vi nenhum segurança. A vontade que tinha era de me livrar depressa daquela situação vexatória, parecia que todos estavam nos olhando. Afirmei novamente: ‘Moço, eu não peguei nada, minha mãe comprou um remédio e pagou, o senhor está me caluniando e me constrangendo em praça pública. O senhor quer ver minha bolsa?. Ele disse: ‘Quero’”.

Então, Maria Angélica chamou uma funcionária do parque para testemunhar que ela não tinha pego nenhum hidratante. “Abri a bolsa, coloquei tudo no chão, de forma que ele pudesse ver todo o conteúdo da minha bolsa. Quando ele viu que não tinha nada, disse para mim:’ Não precisava disso’ e saiu em disparada”. Nesse momento, saí do sério e comecei a gritar: ‘Seu racista, mentiroso, preconceituoso, vou processar vocês, isto é crime de injúria e calúnia’”, contou a assessora de formatura e eventos.

Neta
Maria Angélica contou ainda que, só depois de ter gritado dentro do Salvador Shopping, os seguranças foram até ela para saber o que aconteceu. “Quando tudo acabou, minha neta, apavorada, sem dar uma palavra, de repente falou: ‘ Vovó, fiquei morrendo de medo, achei que o homem ia prender a gente e fazer mal’. Hoje, minha neta anda apavorada. Quando vai em um loja, não desgruda da gente”, declarou.

“Certa vez presenciei duas cenas de racismo no shopping. Dois adolescentes foram barrados na escala rolante que dão acesso à praça de alimentação”, complementou.

Na quarta-feira (8), Maria Angélica irá denunciar o racismo que sofreu ao Ministério Pública da Bahia (MP-BA). Além de um processo criminal, ela também irá mover uma ação reparatória contra o Shopping Salvador e a farmácia Drogasil. Este é o terceiro caso em que estabelecimentos comerciais, em Salvador, são acusados de racismo neste ano. Em março, o policial militar Rafael dos Santos, 33 anos, foi proibido de entrar no Restaurante Picuí, em Jardim Armação. No mês de fevereiro, o empresário Crispim Terral, 34, foi retirado à força da agência da Caixa Econômica Federal do Relógio de São Pedro.

Indenização
Maria Angélica registrou uma queixa na Central de Atendimento do Cliente (CAC) do Salvador Shopping e prestou a queixa de racismo na 16ª Delegacia (Pituba). Ela pediu ao shopping e à farmácia as imagens das câmeras. “Eles negaram. Só vão dar com ordem judicial. O que vai ter imagem é o meu constrangimento”, disse ela.

Nessa quarta-feira (8), ela irá formalizar uma denúncia no MP-BA. “Vou até as últimas consequências. Se eu fosse uma mulher branca de turbante, não me abordaria. Olhe que minha neta é loira de cabelo liso, pois em nossa família tem negros de diversas cores, não é por que ela tem a pele branca que deixa de ser negra”, declarou.

Além de o processo criminal, Maria Angélica irá processar o shopping e a farmácia por dados morais. “Todos são responsáveis. O valor gira na casa dos R$ 100 mil, para cada um. Pode até ser mais. Estamos estudando ainda a gravidade do caso”, disse o advogado de Maria Angélica, Bruno Garrido.

O CORREIO procurou as assessorias do Salvador Shopping e da Drogasil. Em nota a Drogasil informou que “discorda veementemente da atitude do funcionário que abordou a senhora Maria Angelica Calmon, como foi relatado. Este comportamento não reflete de forma alguma os valores da Drogasil. Pedimos desculpas à Senhora Angélica e informamos que a empresa está concluindo as averiguações e tomará as providências para que o fato não se repita”.

Já o Salvador Shopping, por meio de nota, disse que “lamenta o fato relatado e que a administração reforça que prestou assistência imediata e está acompanhando a situação junto à loja desde que a ocorrência foi registrada no Centro de Atendimento ao Cliente”.

Ainda no comunicado, o centro de compras disse que “a administração repudia qualquer atitude discriminatória por parte de lojistas e colaboradores”.

Confira a nota da Drogasil na íntegra:
A Drogasil discorda veementemente da atitude do funcionário que abordou a Sra. Maria Angelica Calmon, como foi relatado. Este comportamento não reflete de forma alguma os valores da Drogasil. Pedimos desculpas à Sra. Angélica e informamos que a empresa está concluindo as averiguações e tomará as providências para que o fato não se repita. A empresa tem o propósito de cuidar de perto da saúde e do bem-estar das pessoas em todos os momentos da vida e faz parte de um grupo com 36 mil funcionários e mais de 1.870 lojas em todo o Brasil. Atendemos diariamente mais de 600 mil pessoas. Somos uma empresa com 84 anos e com valores que prezam pela ética e as relações de confiança e respeito, e valorizam o ser humano dentro e fora da empresa“.

Confira a nota na íntegra do Salvador Shopping:
Em atenção ao post publicado nas redes sociais pela cliente Maria Angélica Calmon, o Salvador Shopping lamenta o fato relatado. A administração reforça que prestou assistência imediata e está acompanhando a situação junto à loja desde que a ocorrência foi registrada no Centro de Atendimento ao Cliente, seguindo à disposição das autoridades para esclarecimentos. A administração afirma que repudia qualquer atitude discriminatória por parte de lojistas e colaboradores. O empreendimento é, inclusive, uma referência por desenvolver ações de combate ao racismo, tendo recebido por quatro anos consecutivos o Selo da Diversidade Étnico-Racial, concedido pela Secretaria da Reparação da Prefeitura de Salvador como um reconhecimento público de ações de promoção da equidade racial nas políticas de gestão de pessoas e marketing“.

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