“Se nós somamos 54% da população, então somos o poder”

Enviado por / FontePor Kátia Mello

Artigo produzido por Redação de Geledés

Não há como não se impressionar com o magnetismo da atuação do ator Antônio Pitanga, em pleno vigor aos 80 anos, na peça “Embarque Imediato”, em cartaz até o dia 8 de março no Teatro Anchieta, no Sesc Consolação, em São Paulo. O ator ícone do Cinema Novo, cinco décadas após uma longa viagem pela África, retoma um tema que lhe é muito precioso porque está vinculado à sua própria história de vida: a diáspora africana.

foto: Caio Lírio

O texto do dramaturgo Aldri Anunciação não poderia ser mais apropriado para reunir a família Pitanga no tablado: Antônio contracena com o filho Rocco e a filha e atriz Camila Pitanga participa com um vídeo. Antônio faz um velho africano que por falta de documentação é confinado em uma sala de aeroporto onde também se encontra um petulante estudante de doutorado que pretende embarcar para a Alemanha, interpretado por Rocco. Na conversa entre os dois, o resgate da memória da dizimação de um povo que começou antes mesmo de aportar no Brasil.

A peça, como o próprio Antônio Pitanga destaca nesta entrevista à coluna Geledés no debate, é uma oportunidade de discutir o legado da escravidão, sobre uma “conta que não fecha” de uma população negra que ainda não ocupa todos os seus espaços e vive o impacto do genocídio.

É também a chance dos jovens negros conhecerem o brilhantismo desse ator octogenário que joga futebol três vezes por semana e, com vários projetos em curso, descarta a aposentadoria. Antônio recebeu a jornalista com um livro debaixo do braço sobre a Revolta dos Malês (um dos mais importantes levantes dos escravizados mulçumanos no país, que se deu em 1835, em Salvador). A leitura faz parte da preparação para o filme que ele irá dirigir em parceria com o cineasta Flávio Tambellini. A seguir, trechos da entrevista:

Geledés – O que entende como diáspora?

A diáspora é de onde você veio e para onde você vai, qual a sua real identidade, sua árvore genealógica. A diáspora me coloca na discussão sobre quem eu sou e de onde eu vim. Sou brasileiro ou africano? Carioca, paulista ou mineiro? Se eu não tenho noção da minha família, vou precisar de papeis para dizer quem sou eu.

Geledés – Como se deu esse encontro familiar dos Pitangas e com qual propósito?

No momento em que eu discuto essa obra, falo um pouco sobre a minha vida, as minhas viagens à África e sobre a tentativa de saber de qual país africano eu vim.  Ao relatar sobre esse continente de mais de 54 países através da dramaturgia, de uma peça, vou interagindo com o público e contando a real história de Antônio Pitanga, ao vivo, para os meus filhos.  E assim, faço deles também a linha de entendimento sobre quem é o pai deles. De onde ele vem? Quem é ele? É uma revisitação da minha própria caminhada.

“Temos a mídia, as redes sociais, com maior abrangência, e por isso o alarido chega mais rápido, mas ainda nos defrontamos com a estrutura organizacional do colonizador.”

Geledés – Em que momento sentiu necessidade de fazer o retorno aos seus antepassados africanos?

Desde o momento que me entendi por gente. Desde que entendi minha mãe, Maria da Natividade, neta de escravos, empregada doméstica, que não tinha carteira assinada, que me colocou para estudar em um colégio interno. Foi quando comecei a entender na Bahia racista, onde somos 90% da população negra de Salvador, que tinha dificuldade de entrar nos lugares; que tinha de pedir licença para ser aceito. Foi aí que percebi que precisava saber quem era o Antônio Pitanga. De onde o Antônio veio. De onde vêm essas barreiras. Se eu sou brasileiro e baiano, porque existe esse tipo de impedimento comigo? Não quis matar ninguém,  mas queria saber quem sou eu.  Queria ter uma noção melhor da minha postura diante dessa sociedade que me negava. Como eu entendo e crio, sou braço construtor desse país. Mas, afinal, que escravidão foi essa?

Geledés – Como foi essa viagem para a África?             

Foto: Divulgação

Viajei por quase dois anos. Saí do Brasil no dia 16 de abril de 1964. Fui para um Festival em Beirute com o filme “Esse mundo é meu”, do Sérgio Ricardo. Do Líbano segui para o Egito e de lá fui até a Líbia. Depois viajei pela Nigéria, Gana, República da Guiné, Senegal, Mali, Benin. Achava que encontraria minha família originária no norte do continente, pela religiosidade baiana, brasileira, língua, dialeto, culinária, música e a estatura das pessoas. Fui me encontrando, mesmo sabendo que poderia não ser de um exato local, até porque foi (o tráfico negreiro) uma tragédia de mais de dois milhões de negros e negras  jogados ao mar. Mesmo Rui Barbosa queimou documentos para que a “mancha preta” acabasse no Brasil. Mas nada disso, naquela ocasião, quebrava meu ânimo nem tirava o meu foco. Não basta relatos, eu queria vivenciar, queria a coisa física, olhar nos olhos daquela gente, conhecer suas culturas, suas tribos, e tentar encontrar uma identificação com a minha família.

Geledés – Como é estar com seus filhos Camila e Rocco nessa peça?

É uma oportunidade que os 80 anos me deram. Esse presente foi dado pelo autor Aldri Anunciação, de 42 anos, a uma pessoa de 80, que já tinha feito essa caminhada na década de 60. Estar com os meus filhos é ter a oportunidade de materializar essa viagem depois de tanta maturação, e trazê-la em um processo em que os três se identificam como artistas. É um prêmio estar no teatro 60 anos depois de estar no continente africano, contando para meus filhos a diáspora. É uma oportunidade abençoada por Dionísio, o Deus do teatro.

Geledés – Falar sobre a diáspora africana nesse momento de desmonte da cultura se tornou mais necessário?

Esse momento é trágico e triste, mas independentemente desse ou de outros momentos, é preciso trazer à baila quem somos. A tristeza e a tragédia vêm de décadas, da maneira como o negro foi trazido ao país, como foi sequestrado de sua terra. Nossos registros não constam nos anais, porque nossa história foi escrita pelo colonizador. E a repetimos há décadas. Há uma conta que ainda não fecha. Na década de 60, éramos 55 milhões de brasileiros; hoje somos 212 milhões e seguimos contando a mesma história. Temos a mídia, as redes sociais, com maior abrangência, e por isso o alarido chega mais rápido, mas ainda nos defrontamos com a estrutura organizacional do colonizador. A referência do brasileiro ainda é o colonizador, o loiro, o alto de olhos azuis. Ela não é o Lázaro Ramos, a Camila Pitanga. Nas décadas de 60 e 70, poucos tinham como referência Ruth de Souza, Abdias Nascimento, Luis Gama e o até Benjamin  Oliveira, o primeiro palhaço negro.

Geledés – Como entende uma juventude negra que desconhece sua grandeza como ator do Cinema Novo?

Eu não culpo a juventude, quem tem menos de 40 anos. A memória brasileira foge entre os dedos e está cada vez mais distante. O Tom Jobim já dizia que o Brasil não conhece o Brasil. Esse alarido da memória não está no dia-a-dia da cultura brasileira, porque a história da África não está no currículo escolar. Não há um movimento da cultura brasileira para isso, mas quando houver, estarão aí todas as conquistas, todas as mulheres negras e todos os indígenas.

Geledés – Um dos temas mais discutidos hoje entre a população negra é o genocídio de seus jovens. Como vê essa questão?

É exatamente essa conta que eu digo que não fecha. Se observarmos como era na década de 50, proporcionalmente, as mortes que então aconteciam e essa falta de entendimento em relação ao negro continua; estamos sempre aquém nas questões sociais e nos direitos humanos. Eu nasci em 1939 e a Declaração dos Direitos Humanos da ONU surgiu em 1945; nessa época, os negros não eram bem recebidos, nem assistidos. Hoje você traduz essa situação em matança, em presídios. É só ver a escalada de negros presos e seus corpos nos cemitérios atingidos por balas perdidas. Como pode um Exército dar 80 tiros em uma família negra a caminho de um chá de bebê? É esse o retrato real de sua pergunta. Que Brasil é esse? O Brasil não é um país de arianos. Somos 54% da população. Onde estão os negros nos pontos estratégicos, de decisão, nos governos? Se não houver investimentos na base desse país não será possível ver o negro. A cota não é para ser eterna, mas um projeto de provocação para fazer com que a sociedade brasileira entenda que é preciso atender a esse jovem negro, agora. Se você não educa o seu povo, estará levando-o à marginalização.

“Eu não quero depender do branco. Se nós somamos 54% da população, então somos o poder. Esse poder passa pelo entendimento dos movimentos negros de eleger os seus representantes. Para não ficar só na reclamação de direitos. Em 2020, no século XXI, quero saber qual é a minha parte nesse latifúndio.”

Geledés – Qual o papel da população branca nesse projeto?

Eu não cobro do branco, mas do negro para que possamos nos organizar e termos voz. Eu não quero depender do branco. Se nós somamos 54% da população, então somos o poder. Esse poder passa pelo entendimento dos movimentos negros de eleger os seus representantes. Para não ficar só na reclamação de direitos. Em 2020, no século XXI, quero saber qual é a minha parte nesse latifúndio. Quando o autor da peça negro escreve para negros, são negros que assumem pontos estratégicos e assim ganhamos outro olhar. Que tenhamos um conjunto de movimentos presentes, não com ódio ou vingança, mas com conquistas, reconhecimentos. Se você se vê no outro, a sociedade vai responder às nossas querências. Os nossos espaços estão sendo ocupados. Não há como esperar. Agora mesmo vou fazer o espetáculo da Revolta do Malês. Não desmereço ninguém, mas é o olhar de um negro que conhece esse movimento e dá um outro desfecho, não só técnico, de conhecimento, mas das dores sofridas.

Geledés – Como é esse projeto e outros que estão em andamento?

É um projeto para esse ano, em que vou dirigir e produzir. E já tem um branco comigo, (o cineasta) Flávio Tambelini. Teve o documentário “Pitanga” (dirigido por Beto Brant e Camila Pitanga), que trouxe para o primeiro plano a história do cinema brasileiro e a minha história como ator. Fiz também o longa “Escravo de Jó”, de Rosemberg Cariry, participei na série “4 + 1” e fiz o filme “Casa de Antiguidades”, que o João Paulo escreveu para mim quando eu tinha 70 anos, mas não contou a ninguém. Quando ele conseguiu o dinheiro, eu já estava com 80. E ele se perguntava: “Mas o Pitanga está bem? Com uma boa memória? Será que conseguirá fazer um personagem principal que toca berrante e monta a cavalo?” João Paulo, então, pegou um avião e veio almoçar comigo. Levei-o à Confeitaria Colombo (no centro do Rio). Aí ele disse: ”Você está bem.” Nunca deixei de me cuidar, joguei capoeira por muitos anos e continuo a jogar bola por três vezes por semana. Claro que não tenho a idade do meu filho, 39, mas tenho um agito no corpo que me faz me manter de pé. Não fico em casa, vou ver os amigos, vou ao supermercado, pego o metrô. Quero ver gente. Amo gente.

Geledés – Vejo que está com um livro; está sempre lendo?

Estou lendo o livro Ganhadores – a greve negra de 1857 na Bahia, de João José dos Reis, que fala sobre a Revolta dos malês, sobre a escravidão, as torturas e de como o Brasil se comportou nesse período.  Não temos mais colonizadores, mas a relação de escravidão ainda persiste, e a de negação disso ainda é grande. Quando eu falo a conta não fecha, quero dizer que esse Brasil dos negros ainda não está no primeiro plano. O percentual de retratados é infinitamente branco, mesmo que sejamos  54% da população.

 

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