Segunda mãe: “Matando, esculachando, batendo, xingando, forjando”

Por Tatiana Merlino, do Rio de Janeiro, especial para o Viomundo

A casa onde mora tem dois cômodos. Num deles, ficam televisão, armário, cama, onde sou convidada a sentar. Ela puxa uma cadeira, as crianças a rodeiam. “Abaixa a tevê aí”, ela pede a um dos meninos. É uma mulher bonita, negra, magra, longilínea. Tem mais de 1,75 de altura. Olhos grandes, marejados, rosto abatido. Cabelos negros presos num rabo de cavalo. Tem 43 anos e sete filhos biológicos, de idades entre 26 e 11 anos. Tinha mais dois filhos por afinidade.

Trabalha como auxiliar de serviços gerais numa empresa de transmissão de energia. E tem medo da polícia.

Moradora da comunidade Pavão Pavãozinho Cantagalo, no bairro de Copacabana, Rio de Janeiro, Simone Hilário Sousa era como uma “segunda mãe” para o bailarino do programa “Esquenta”, da Rede Globo, Douglas Rafael da Silva Pereira, o “DG”, assassinado em 21 de abril, na favela do Pavãozinho.

Ele tinha 25 anos quando foi morto após policiais da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) localizada na comunidade, terem realizado uma operação na noite do dia 21 para, segundo a PM, checar uma denúncia relativa ao tráfico de drogas no local. Desde os 14 anos, o rapaz elegeu Simone como “segunda mãe”. “Ele me chamava de mãe e eu abracei ele como um dos meus filhos. Foram onze anos de relação.” O rapaz “morava na rua”, diz ela, referindo-se a quem não mora no morro, “mas passava muito tempo aqui com a gente”.

Eram tardes e tardes cantando e dançando com os meninos da vizinhança. Simone vivia pedindo para eles abaixarem o volume do rádio, que mantinham no máximo. Uma de suas apresentações em família está gravada no celular da segunda mãe de DG. Ela liga o áudio e me olha. “Caramba, viu como ele cantava bem, moça?”, comenta, numa das poucas vezes que levanta a cabeça e dirige o olhar para mim. “Ele era muito carinhoso, me pedia a bênção na chegada e na despedida.”

Quando a notícia da morte do rapaz chegou, ela estava descendo o morro para ir trabalhar: “Simone, Simone, o DG tá morto dentro da creche!”, ouviu. Ela perdeu o controle: “Fiquei doida, desesperada, não sabia onde enfiar a cabeça”.

Quando a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) no Pavão Pavãozinho instalou-se na comunidade, em dezembro de 2009, Simone acreditava que junto chegariam oportunidades para os moradores. “Achei mesmo que a situação iria melhorar”. Porém, a aposta não se confirmou para a moradora do Pavãozinho. “Desde que entraram aqui, é o tempo todo matando, esculachando, batendo, xingando, forjando, tomando as coisas dos outros. Aqui tem gente que faz coisa errada, mas não é todo mundo”.

Simone diz que há muitos casos de violência policial, mas que na maioria das vezes não são reportados. “Outro dia bateram num menino aqui”, diz, referindo-se a um vizinho, que havia me contado, pouco antes, ter apanhado dos policiais do Bope. “Claro que porque sou negro e pobre”, disse ele, que preferiu não se identificar.

Segundo Simone, em vez de passar a sensação de proteção aos moradores, a UPP provoca “medo e terror o tempo inteiro, ainda mais agora que perdi dois filhos de uma vez só”. O segundo filho a que ela se refere é Edilson da Silva Santos, de 27 anos, assassinado com um tiro no rosto durante protesto de moradores que se seguiu à morte de Douglas.

“Quando desci para socorrê-lo, já estava morto”. Edilson tinha deficiência mental. “Ele levou um tiro na cara”, diz a mãe adotiva. “Pega lá a pastinha dele”, pede a outro filho, que vem com uma pasta com o RG e documentos do jovem. “Ele não tinha ninguém, não era bom da mente. Tudo que a gente falava, ele repetia, sabe? Se eu falasse ‘Simone’, ele repetia ‘Simone’”.

Embora o nome do rapaz fosse Edilson, quando apareceu na comunidade, ninguém sabia como ele se chamava e assim passou a ser conhecido como Mateuzinho. O jovem chegou a ficar seis anos internado num manicômio judiciário após furtar um pedaço de alumínio. No Pavãozinho, certo dia ele apareceu dormindo dentro de um carro. Simone deu comida, atenção e amor.

Ela acredita que quem matou os dois jovens foi a polícia. Mas receia por sua segurança. “A gente coloca corrente no portão e eles arrebentam, entram sem mandado, sem nada. Enquanto vocês estão aqui, enquanto tem repórter para cima e para baixo, a gente está seguro. Depois que vocês forem embora, não tem mais segurança, acabou tudo. Porque quem deveria proteger a gente, mata a gente.”

Fonte: Viomundo 

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