Seiscentos dias, em mais de 500 anos, sem resposta

FONTEPor Anielle Franco e Bianca Santana, na Folha de S. Paulo
Marielle Franco (Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo)

“Na condição de protagonistas, oferecemos ao Estado e a sociedade brasileira nossas experiências como forma de construirmos coletivamente uma outra dinâmica de vida e ação política”, registrava a carta da Marcha das Mulheres Negras, de 2015, com a mesma generosidade que historicamente tem sido exercida nos cuidados de toda a população brasileira, por nossas ancestrais e irmãs, que tanto fizeram para que hoje estejamos aqui.

No trabalho doméstico, como babás, enfermeiras, assistentes sociais, professoras, escritoras, ativistas, governadoras, deputadas e vereadoras temos colocado nossos corpos e saberes a serviço da vida e do bem viver de todas e todos. Em troca temos recebido baixos salários, invisibilidade e diversas formas de discriminação racista e sexista. Isso quando não nos clamam como incompetentes ou nos rotulam conforme nossa cor, corpo, jeito, cabelos.

O feminicídio e o encarceramento das nossas crescem exponencialmente. Enterramos nossos pais, irmãos, filhos e entes queridos depois de mortes violentas e precoces. E se superamos as inúmeras barreiras que nos separam dos espaços de poder institucional, podemos levar quatro tiros na cara, 13 no total.

Dos racistas não esperamos nada de diferente. Mas enquanto isso, nós que estamos vivas, de pé, nos comprometemos a não descansar até que a guerra contra o nosso povo acabe. Lutamos e lutaremos por justiça, espalharemos sementes, defenderemos a memória e multiplicaremos o legado de Marielle Franco. Oferecemos todo o nosso apoio às mulheres, pessoas negras e faveladas que queiram ocupar a política e outros espaços de poder.

Organizadas em 104 diferentes entidades do movimento negro, temos promovido ações de incidência política no Congresso e em instâncias internacionais de direitos humanos, como a Coalizão Negra Por Direitos.

Estamos articuladas para mostrar a todas e todos que qualquer política de segurança pública precisa ser desenhada a partir de dados e evidências, com a participação das pessoas mais vulneráveis, e não de convicções carregadas de ideologias racistas vendidas como isenção e neutralidade, como é o caso do pacote de morte, falsamente chamado de pacote anticrime, de Sergio Moro.

Para ampliar nossa ação, precisamos repactuar alianças com aquelas e aqueles que reconhecem nossa humanidade e estão do nosso lado na luta antirracista. É urgente criar mecanismos para que o Estado interrompa a promoção do genocídio em curso. Genocídio já reconhecido pelo próprio Estado, nos relatórios da Câmara e do Senado, de 2016, da CPI do Assassinato de Jovens.

E o mais urgente: qual a ligação da família Bolsonaro com o assassinato de Marielle Franco? Não podemos conviver com a possibilidade evocada pelo nome do presidente da República e de seus filhos, que ocupam cargos no Poder Legislativo, estar citado em inúmeras ligações com os suspeitos deste crime: desde possíveis coincidências, como a vizinhança no mesmo condomínio da Barra da Tijuca ou fotografias nas redes sociais, até os fatos objetivos de terem emitido passaportes diplomáticos a familiares de suspeitos e a contratação de parentes dos acusados em seus gabinetes. É inaceitável pairarem dúvidas desta magnitude em relação a quem ocupa a Presidência da República. E é grave a intenção manifestada pelo ministro da Justiça de federalizar as investigações.

Não vamos medir esforços para cobrar das autoridades que as investigações cheguem ao mandante político do assassinato de uma de nossas protagonistas mais generosas, que dedicou a vida à luta por igualdade e justiça para todas e todos.

Reafirmamos a necessidade de uma investigação isenta, sem manipulação de provas ou manobras midiáticas, comprometida em responder a pergunta que fazemos há 600 dias: quem mandou matar Marielle?

Anielle Franco
Jornalista, professora, mestranda em relações étnico-raciais e autora do livro ‘Cartas para Marielle’ (ed. Conexão 7); é irmã de Marielle Franco e diretora do instituto que leva o nome da vereadora, assassinada em 2018

Bianca Santana
Jornalista, pesquisa a memória e a escrita de mulheres negras; é autora de “Quando me Descobri Negra” (ed. Sesi-SP)

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