Semelhança entre navio negreiro e unidade socioeducativa não é coincidência 

FONTEPor Mayara Silva de Souza, do Ecoa
Alojamento em unidade socioeducativa em Teresina registrado em relatório de inspeção em 2015 (Foto: Divulgação/MP-PI)

Em um quarto escuro, pequeno e úmido, dezenas de meninos se espremem para caber em um espaço limitado demais para todos. Eles estão muito próximos e aprisionados em correntes de julgamentos jurídicos e morais. O mau cheiro, a sujeira, as marcas na pele, as roupas que cobrem seus corpos denunciam que eles não têm condições mínimas de higiene e sobrevivência. O medo, a fome e a sede são constantes, as doenças se espalham com facilidade. Muitos deles morrem e adoecem gravemente em pouco tempo, antes de chegar ao final da travessia da adolescência.

O trecho acima foi adaptado, sem nenhuma dificuldade, de uma narrativa sobre como eram as travessias dos navios negreiros para a situação atual de algumas unidades de atendimento socioeducativo que recebem adolescentes considerados responsáveis por prática infracional. De acordo com dados do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), há “quadros graves de superlotação e/ou grande número de pedidos de vagas de internação não atendidos (“fila de espera”), revelando-se a desproporção entre a oferta e a demanda de vagas para essa modalidade e medida socioeducativa” em vários estados brasileiros; outras pesquisas também apontam que a superlotação é um problema crônico do sistema socioeducativo. Em 2019, por exemplo, ao menos onze estados tinham mais adolescentes internados do que o total de vagas disponíveis nas unidades.

Mas, por que privar tantos adolescentes do direito à liberdade? Segundo o levantamento realizado, em 2012, pelo Programa Justiça ao Jovem, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), “observada a incidência de delitos, os mais praticados foram os atos infracionais contra o patrimônio (preponderantemente roubo, 36%), seguido de tráfico de drogas (24%)”, demonstrando que o tráfico de drogas é uma das principais razões pelas quais a maioria das medidas socioeducativas de internação são aplicadas.

Neste sentido, duas reflexões são necessárias: além da Convenção nº 182 da Organização Internacional do Trabalho sobre Proibição das Piores Formas de Trabalho Infantil e Ação Imediata para sua Eliminação reconhecer, como piores formas de trabalho infantil a utilização, recrutamento e oferta de criança para atividades ilícitas, particularmente para a produção e tráfico de entorpecentes conforme definidos nos tratados internacionais pertinentes; muitos adolescentes em privação de liberdade em razão do tráfico de drogas, provavelmente, nunca sequer consumiram mercadoria que supostamente vendiam. O consumo fica a cargo de pessoas que o farão bem longe do lugar de compra, e que desconhecem completamente – ou não – a realidade.

Hoje (21), o Supremo Tribunal Federal decretou o fim da superlotação em unidades socioeducativas no Brasil, julgando procedente o habeas corpus nº 143.988, ação proposta pela Defensoria Pública do Estado do Espírito Santos em razão da unidade de internação Regional Norte que dispunha de 90 vagas e atendia 201 adolescentes. Em voto público e já divulgado o Relator Ministro Edson Fachin, destaca que foram registrados apenas nesta unidade quatro óbitos de adolescentes. Assim, a recente decisão do STF, além de histórica, também nos dá a oportunidade que não tivemos como sociedade de prestar nossa solidariedade às famílias dos adolescentes Romário Da Silva Raimundo, Gabriel Tótola Da Silva, Leonardo De Jesus Das Virgens e Jeferson Rodrigues Novais.

Embora proposta pela Defensoria do Espírito Santo, não precisou de muito tempo para que as Defensorias dos estados do Rios de Janeiro, Ceará, Pernambuco e Bahia se juntassem à ação e solicitassem pedidos de extensão para seus respectivos estados, pedido deferido liminarmente pelo Relator, e confirmado na decisão final, revelando, mais uma vez, que a superlotação não é um caso isolado, mas sim estrutural em todo o país.

Além dos pedidos de extensão, as Defensorias Públicas dos estados de São Paulo, Rio Grande do Sul e Tocantins e organizações da sociedade civil, como o Instituto Alana, o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, a Conectas Direitos Humanos, Movimento Nacional de Direitos Humanos, Ordem dos Advogados do Brasil – Seção do estado do Rio de Janeiro e outras, também ingressaram na ação para colaborar de maneira técnica, como amici curiae, trazendo informações e dados, o que torna o julgamento mais rico e detalhado.

É importante lembrar que a Constituição Federal, no artigo 227, estabelece que é dever das famílias, da sociedade e do Estado assegurar direitos de crianças e adolescentes com absoluta prioridade. O mesmo artigo, no inciso V, do parágrafo 3º, assegura a proteção especial para adolescentes a quem são atribuídas práticas infracionais, estabelecendo que a privação de liberdade deve respeitar os princípios da brevidade, excepcionalidade e o respeito à peculiar situação de desenvolvimento.

A representação das unidades superlotadas do sistema socioeducativo como navio negreiro se comprova por várias razões. Para além da discussão sobre o encarceramento dos corpos per se, as estruturas insalubres e precárias das unidades; as condições desumanas e as diversas violações de direitos fundamentais e, por fim, pela maioria destes adolescentes terem corpos pretos e pardos são um retrato, senão fiel, muito próximo dessas embarcações. Razões estas amplamente comprovadas nos autos da ação que tramita da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, tendo os votos favoráveis – e, acima de tudo, humanos – dos Ministros Edson Fachin, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Carmem Lúcia.

Tão importante quanto reconhecer e assegurar direitos desta parcela da população é ouvir e escutar seus sonhos. Crianças, adolescentes e jovens negros têm sido sistematicamente violados em seu direito básico à vida, direito este sem o qual nenhum outro é possível.

É preciso garantir a vida e muito mais a estas pessoas, que são, vale lembrar, sujeitos de direitos e indivíduos em um estágio peculiar de desenvolvimento. Há que se repensar o sistema socioeducativo como um real espaço de promoção de direitos e não de violações e violências.

Com a decisão em questão, o STF tem a oportunidade de ouvir o sonho de milhares de adolescentes de serem tratados com respeito, humanidade e dignidade, e garantir que seus direitos fundamentais sejam, de fato, assegurados para que todos os demais, inclusive a reintegração social, sejam possíveis e para que outras oportunidades de sonhar sejam realidade.

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