“Senhor, livrai-nos da violência policial”, reza uma igreja em São Paulo

Nas missas do Padre Paulo Bezerra, tem espaço para policial que defende a desmilitarização da PM e para drag queen explicar a diversidade sexual

por Fausto Salvadori Filho no Ponte

No último domingo (19/6), os fieis que lotaram a igreja Nossa Senhora do Carmo, no Largo da Matriz em Itaquera, zona leste de São Paulo, rezaram pedindo o fim da violência policial e, durante a missa, assistiram a uma palestra em que o tenente-coronel aposentado da PM Adilson Paes de Souza defendeu a desmilitarização das polícias.

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Orações do último domingo em Itaquera

Durante a Oração dos Fieis, os católicos pediram “Ó Senhor, escutai a nossa prece” em preces que incluíam “livrai-nos, Senhor, da violência policial truculenta e cega” e “livrai-nos, Senhor, da violência social enraizada no solo apodrecido do sistema capitalista”.

A discussão de temas sociais sempre fez parte das celebrações realizadas pelo padre Paulo Sérgio Bezerra, 62 anos, que é pároco da igreja Nossa Senhora do Carmo há 34 anos — está há tanto tempo na função que, na missa do último domingo, ao batizar uma criança, lembrou da bisavó dela, que havia trabalhado como secretária da igreja.

Na semana anterior, a igreja havia recebido uma drag queen, o militante Albert Roggenbuck, do Esquadrão das Drags, que falou na igreja sobre diversidade sexual. Na missa de amanhã (26/6), será a vez do professor David Guarani, da comunidade indígena do Jaraguá (zona norte da capital), abordar a luta dos povos indígenas.

Paulo Bezerra faz parte da Teologia da Libertação, uma corrente teológica com forte preocupação social, surgida nos anos 1960, que vinha comendo o pão que o diabo amassou nos pontificados conservadores de João Paulo 2 (1978-2005) e Bento 16 (2005-2013), mas que hoje ensaia um renascimento com a chegada do Papa Francisco. “Agora estamos com tudo”, afirma o padre.

Na missa de 19/6, que a reportagem da Ponteacompanhou, a celebração começou com a chegada de moradores do bairro carregando cartazes de desmilitarização já! ou parem de nos matar, ao lado de fotos de jovens assassinados pela PM. Um dos fieis era Sandra Batkevicius. Sob as imagens de Nossa Senhora do Carmo e do Cristo crucificado, ela carregava uma imagem do filho, Guilherme, morto por policiais militares com um tiro nas costas.

“Se a democracia no Brasil fosse real, não haveria hoje, nessa igreja, pessoas carregando cartazes com fotos de parentes mortos”, afirmou Adilson Paes de Souza, olhando para Sandra, no início da sua palestra. Mestre em Direitos Humanos e autor do livro O Guardião da Cidade – Reflexões sobre Casos de Violência Praticados por Policiais Militares (Escrituras, 2013), Adilson contou sobre a militarização do policiamento de rua que foi levado a cabo pelo regime militar, a partir de 1969, na esteira AI-5, norma que deu início à fase mais sangrenta da ditadura.

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Na sua fala, Adilson afirmou que a cultura da ditadura permanece presente até hoje no modo de pensar e agir dos policiais militares. “A PM continua a treinar pessoas para aniquilar um ‘inimigo da nação’. Se antes esse inimigo eram os guerrilheiros, hoje são os jovens negros das comunidades pobres”, disse. Em tom próximo do bíblico, acrescentou: “O mal assume várias faces, e no Brasil uma delas é a da proteção”.

Na hora da Eucaristia, o tenente-coronel teve uma surpresa. Padre Paulo convidou-o a comungar, mesmo após Adilson dizer que nunca havia feito a primeira comunhão. O pároco disse isso não tinha importância.  “Se o senhor se arrisca ao dizer as coisas que disse hoje aqui, então já está em plena comunhão com Cristo”, disse, pouco antes de oferecer a hóstia consagrada para o policial.

Após a celebração, Adilson disse à Ponte que foi “uma experiência marcante” fazer uma palestra sobre desmilitarização da PM e direitos humanos numa missa. “Poder falar para aquelas pessoas fez com que eu me sentisse útil. Fiquei feliz por ver que há, na Igreja católica, alguém que, de fato, se preocupa com os excluídos”, elogiou.

A reportagem resolveu conhecer a história desse alguém e fez uma entrevista com o padre Paulo.

Ponte – Fale um pouco do trabalho que o senhor desenvolve.

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Padre Paulo Bezerra – Eu vim para a paróquia Nossa Senhora do Carmo, em Itaquera, em 1982. Estava aqui estava o padre Chico Falconi, que foi meu predecessor, e naquele tempo era muito forte a linha dos direitos humanos, da opção pela periferia, da pastoral operária e também das comunidades de base. Então, o padre faleceu e fiquei aqui. E aqui estou até agora, há 34 anos. Havia em toda a zona leste (eram umas 50 paróquias) uma certa convergência de opções pastorais, voltada para a libertação em todos os sentidos. Em 1989 houve uma desarticulação total [naquele ano, uma reforma conduzida pelo papa João Paulo 2º dividiu a arquidiocese de São Paulo, comandada pelo cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, no que foi visto como uma manobra para enfraquecer os setores do clero ligados às causas sociais] e aqui ficamos uns 15 padres que resistíamos, confinados cada um em sua paróquia. Em 2010, a gente fundou um grupo chamado IPDM, Igreja Povo de Deus em Movimento, onde passamos de ficar chorando as pitangas do passado a nos unir para retomar a caminhada da Teologia da Libertação.

Como foi criar esse movimento ainda com o Papa Bento 16?

Padre Paulo – Foi uma reação ao que estava acontecendo. Primeiro, a igreja acuada por escândalos de pedofilia e por escândalos econômicos no Vaticano. Aqui na zona leste, a igreja católica está inexpressiva. Queremos uma igreja sal da terra, luz do mundo, expressiva. Unimos as pessoas com a mesma visão ideológica e teológica para uma caminhada mais articulada. Assim nasceu o IPDM. A nossa sorte foi que em 2013 veio o Papa Francisco. Agora estamos com tudo. Fomos retomando a Teologia da Libertação chamando para discussões algumas figuras referenciais: Leonardo Boff, Frei Betto, Luíza Erundina. Isso com esse grupo maior. Aqui na paróquia, na realidade, começamos bem antes, em 2007, discutindo a questão ambiental. Também discutimos, nas novenas, o feminismo e a diversidade sexual. Passaram por aqui dois candidatos à presidência da República: Marina Silva e Plínio de Arruda Sampaio. Tivemos aqui monges budistas e pessoas agnósticas ligadas à busca por um mundo melhor e mais justo. Marilena Chauí também esteve aqui.

Qual foi a reação à vinda dessas pessoas?

Padre Paulo – É claro que, dependendo da pessoa que vinha, repercutia de uma forma meio complicada. Quando trouxemos o Leonardo Boff aqui, em 2012, para um seminário, houve uma certa repreensão da autoridade eclesiástica local. Quando veio a Chauí, tive que me justificar para o bispo porque ela veio. No ano passado, foi a vez da diversidade sexual e também tive que me justificar por causa das preces que nós fizemos. A paróquia tenta todo ano, em junho e julho, desde 2007, fazer um temário em que a igreja dialoga com a sociedade. Escolhemos pessoas que tenham propostas alternativas para a sociedade. É para abrir a cabeça do povo abrir e tornar a igreja mais viva e atuante.

E reação da comunidade?

Padre Paulo – A reação de 90% é de adesão, de apoio. Tem uns 10% que resistem e às vezes boicotam. Mas você viu: a igreja está cheia.

A sua atuação gera mais controvérsia junto à comunidade ou ao clero?

Padre Paulo – Ao clero. A maioria do clero tem a cabeça do religioso que não se mete na realidade social. Mal fazem uma campanha de agasalho. Entrar nas estruturas, conversar com movimentos populares, isso não fazem. O que fazemos aqui repercute de forma resistente no clero. A gente do IPDM, esse grupinho de padres, é tida como pessoas hereges, revoltadas, que não estão em comunhão eclesial.

Uma atitude como a que o senhor teve, de dar a eucaristia ao coronel Adilson, que não tem a primeira comunhão…

Padre Paulo – Nossa Senhora, isso jamais eles aceitam. Só por defender a vida, Adilson já está em comunhão com o Evangelho, mesmo que os aspectos doutrinais não sejam acatados. No principal ele está com a gente, que é dar a vida e promover a vida. É uma abertura ecumênica que temos, de reconhecer a presença de Deus em todos os segmentos religiosos e inclusive nos agnósticos. Isso é uma doutrina da igreja de 60 anos atrás, do Concílio Vaticano 2º. E agora temos uma força maior, que é o Papa Francisco. Quando está com o clero, o papa é rigoroso. No ano retrasado, ele falou das doenças espirituais da Cúria Romana, entre elas o carreirismo. Muitos padres da época de João Paulo 2º e Bento 16 achavam que, sendo conservadores, subiam de cargo. Com o papa atual, isso vai ser desmontado. Claro que não é da noite para o dia, vai levar anos. O Papa pede que cada um seja servidor do povo.

Essa visão comprometida com o social é coisa da velha guarda da igreja?

Padre Paulo – Sim. Que padres estão, por exemplo, na Pastoral Carcerária? São padres estrangeiros e idosos. Quem está com os moradores de rua? O padre Júlio, que tem a minha idade. Os padres novos querem estar na mídia. Por isso tem padre que é cantor sertanejo. Eles não vão fazer uma leitura da realidade como a gente faz. A nova geração de padres é despolitizada. Quando chega a campanha eleitoral, quantos padres vão atrás de candidato para pintar igreja, reformar piso? Depois de tudo o que lutamos nos anos 80, criticando as pessoas mais pobres que trocavam voto por dentadura, os padres estão fazendo a mesma coisa.

Mas também há a politização de alguns padres voltada a propostas conservadores?

Padre Paulo – Sim. São três movimentos que têm muita força na igreja: a renovação carismática, ligada ao pentecostalismo evangélico e fundamentalista que está no Congresso, a Opus Dei, ao qual pertence o governador, e o neocatecumenato, que pega uma linha de moralismo, vendo tudo como pecado, e agrada aos bispos, porque é submisso às autoridades e enche as igrejas de pessoas de classe média para cima. Então, tem uma despolitização, como eu disse anteriormente, em relação à política como luta pelo bem comum, e uma politização por privilégios, sejam religiosos ou econômicos. Você tem um clero muito conservador, que tende à direita.

E como é chegar à sua idade ainda resistindo a tudo isso?

Padre Paulo – Tem uma questão de fé. Não sou comunista, não sou filiado a nenhum partido. É uma opção de fé a partir do Evangelho da pessoa do Nazareno crucificado e ressuscitado. A teologia que estudei me ajudou a firmar essa opção de fé. A fé como fermento, como sal, como luz, como construção do Reino de Deus. Então, pela fé a gente é perseverante. Se fosse por outros motivos, já teria rodado. Se não fosse Jesus crucificado e ressuscitado e se não fosse o povo, eu já não seria mais padre. Ia cuidar da minha hortinha, de outras coisas. A gente aguenta sofrimento, discriminação, marginalização, porque acredita e tem um compromisso. Agora, a opção de fé não é no oba-oba. Tem que ser teologizada, com apoio da filosofia, da antropologia, da sociologia, da arte, da cultura. Claro que de vez em quando dá desânimo. Hoje quem não está decepcionado com o PT, por exemplo? Mas, de 2013 para cá, começou a voltar toda uma vontade de participação, de luta, e isso anima a gente também.

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