Sentença de condenação sobre preconceito racial

TERMO DE AUDIÊNCIA

AUTOS Nº 0193700-96.2009.5.15.0093

 

Aos vinte e dois dias do mês de abril de 2010, às 17h15min, na sala de audiências desta Vara, por ordem da MM. Juíza do Trabalho Substituta DRA. LUCIANA CAPLAN, foram apregoados os litigantes:

 

Reclamante: JOSÉ APARECIDO MARTINS

Reclamada: BORG WANER AUTOMOTIVE BRASIL LTDA

 

Ausentes as partes. Pelo Juízo, foi proferida a seguinte

S E N T E N Ç A

 

Vistos, etc.

JOSÉ APARECIDO MARTINS, qualificado nos autos, ajuíza reclamação trabalhista em face de BORG WANER AUTOMOTIVE BRASIL LTDA, também qualificada, afirmando que foi admitido em 09/12/2005, nas funções de operador de máquinas, tendo sido dispensado em 06/05/2008, quando recebia salário de R$ R$ 1.250,85. Alega ter sofrido agressões raciais no ambiente de trabalho. Diante dos fatos narrados, postula os direitos elencados às fls. 16/17. Atribui à causa o valor de R$ R$ 140.000,00 e junta documentos.

Regularmente notificada, a reclamada compareceu à audiência designada e, infrutífera a tentativa de conciliação, apresentou defesa em forma de contestação escrita (fls. 39/53), na qual argüiu preliminares, invocou a prescrição e, no mérito, contestou os fatos narrados, requerendo a improcedência do pedido. Com a defesa, vieram documentos.

Réplica às fls. 96/97.

Colhido o depoimento pessoal da parte autora e dispensada a oitiva da reclamada.

Encerrada a instrução processual.

Tentativas conciliatórias infrutíferas.

É o relatório.

DECIDO.

PRELIMINARES

Incompetência material da Justiça do Trabalho

A reclamada afirma que esta Justiça Especializada é incompetente para processar e julgar o presente feito.

Ora, a Emenda Constitucional 45/2004 pôs ponto final ao debate sobre a competência da Justiça do Trabalho para julgar pedidos atinentes às indenização por danos morais.

No caso em tela, pretende o obreiro a reparação pelos danos sofridos em razão da ausência de garantia de ambiente salubre, do ponto de vista psicológico, para a realização do trabalho.

Pergunta-se: os fatos ocorridos que ensejam o pedido formulado ocorreriam, não fosse a relação de trabalho? É certo que não.

Portanto, uma vez que os fatos estão atrelados à existência da relação de contrato de emprego, rejeito a preliminar.

 

Impossibilidade Jurídica do Pedido

Afirma a reclamada que o pedido é juridicamente possível, pretendendo a extinção do feito sem resolução do mérito, por entender o reclamante carecedor de ação.

Sem razão, contudo.

A impossibilidade jurídica do pedido caracteriza-se pela vedação do exercício do direito pelo ordenamento jurídico vigente.

Conforme leciona Humberto Theodoro Junior:

 

Pela possibilidade jurídica, indica-se a exigência de que deve existir, abstratamente, dentro do ordenamento jurídico, um tipo de providência como a que se pede através da ação. Esse requisito, de tal sorte, consiste na prévia verificação que incumbe ao juiz fazer sobre a viabilidade jurídica da pretensão deduzida pela parte em face do direito positivo em vigor. O exame realiza-se, assim, abstrata e idealmente, diante do ordenamento jurídico.

Predomina na doutrina o exame da possibilidade jurídica sob o ângulo de adequação do pedido ao direito material a que eventualmente correspondesse a pretensão do autor. Juridicamente impossível seria, assim, o pedido que não encontrasse amparo no direito material positivo.

(Curso de Direito Processual Civil, vol.1, 30ª ed, Forense, págs. 54 e 55)

 

Portanto, no caso em tela, apenas haveria impossibilidade jurídica se não fosse permitida, pelo ordenamento jurídico vigente, a responsabilização civil do empregador, o que se afigura como pretensão totalmente absurda e sem propósito por parte da reclamada. Rejeito a preliminar.

 

Ilegitimidade passiva

A legitimação é a pertinência subjetiva da ação, revelando-se que o réu será parte legítima para sofrer a ação se tiver de prestar o que lhe é pedido, pelo menos em tese. O eventual não reconhecimento da responsabilidade, após a análise do mérito, poderá dar ensejo à improcedência dos pedidos tecidos na petição inicial e não à extinção da ação com base no artigo 267, inciso VI do CPC. No entanto, uma vez que a pretensão obreira dirige-se à reclamada, trata-se de parte legítima para responder, máxime diante da autonomia do direito de ação. Rejeito.

 

Nulidade processual – cerceamento do direito de defesa

Da leitura das peças processuais, infere-se que não havia controvérsias quanto aos fatos narrados pelas partes, mas apenas quanto às conseqüências destes fatos, exceto quanto ao reclamante ter afirmado que não foi atendido pessoalmente por nenhum superior, bem como quanto à limpeza do banheiro no tocante às mensagens escritas.

Em depoimento pessoal, o reclamante confirmou que conversou com o diretor da empresa sobre o problema, bem como que havia preocupação da reclamada com a limpeza do banheiro. Portanto, os fatos, após o depoimento pessoal do autor, tornaram-se todos incontroversos, o que motivou o indeferimento da produção das demais provas orais, não havendo que se falar em qualquer nulidade processual.

 

MÉRITO

Assistência Judiciária Gratuita

Diante da declaração de fls. 19, defiro os benefícios da assistência judiciária gratuita (artigo 790, parágrafo 3º, da CLT).

 

Dano Moral

O reclamante afirma que desde o início do pacto laboral foi vítima de algumas atitudes racistas por parte de seus companheiros de trabalho mas que houve um aumento muito grande após ter organizado um time de futebol com o apoio da reclamada. Diz que sofria constantes agressões através de escritos no banheiro coletivo da reclamada.

A reclamada não nega que estas agressões tenham ocorrido, mas afirma que não pode ser penalizada por atos de terceiros, mesmo que empregados, eis que não realizados no desempenho de suas funções.

É fato, portanto, nos autos, que havia uma tensão de cunho racial no ambiente laboral do reclamante.

Ora, tenho por certo que incumbe ao empregador assegurar a integridade física e moral de seus empregados durante a jornada de trabalho, ou seja, durante o momento em que o obreiro coloca à disposição sua força de trabalho.

Para tanto, o empregador deve empreender todas os seus esforços, de maneira a oferecer um adequado ambiente de trabalho.

No caso em tela, em momento algum a reclamada indica ter adotado, de fato, medidas enérgicas a fim de coibir esta verdadeira barbárie no local de trabalho.

Aliás, o depoimento pessoal do reclamante, que respondeu afirmativamente à pergunta da procuradora da reclamada quanto a também haverem dizeres de conteúdo censurável quanto ao diretor da empresa, demonstra um absoluto descaso do empregador quanto à manutenção de níveis mínimos de civilidade no ambiente de trabalho.

O fato do reclamante não ter indicado os autores destas notas é irrelevante, eis que constatado que a coletividade produzia estas aberrações que feriam sua honra, sem qualquer conduta mais firme por parte do empregador.

A reclamada afirma que o reclamante anuiu com ações individuais caso verificado o autor das escritas, concordando que ação generalizada iria piorar o quadro.

Ora, em primeiro lugar, há que se considerar que a anuência do reclamante é nula de pleno direito, na forma do artigo 9º, da CLT. Ademais, trata-se de responsabilidade do empregador, a ser por ele assumida, independentemente do desejo do trabalhador.

Veja-se que a empresa estava ciente do problema, já que adotou procedimento diário de limpeza do banheiro para apagar os dizeres lançados. Nenhuma outra medida foi adotada, seja para descobrir o(s) autor(es), seja para criar um ambiente de trabalho adequado, com medidas de conscientização e cidadania.

Já é hora de assumirmos a responsabilidade histórica pelas precárias condições das relações raciais que são entabuladas no Brasil, dada a falsa idéia de “democracia racial”. Há inúmeros estudos sociológicos que demonstram que esta falácia decorre da resignação e resiliência dos homens e mulheres negros, muitas vezes às custas de sua dignidade.

Na empresa reclamada, por exemplo, a situação chegou ao ponto do reclamante ter solicitado sua dispensa e ter sido atendido, o que revela a impossibilidade de manutenção do contrato de trabalho em razão das má condições de trabalho. É evidente que não se sustenta a tese de que o obreiro pediu para ser dispensado por contar com dificuldades financeiras eis que aqueles que têm problemas financeiros jamais pedem para perder o emprego.

Portanto, não há dúvidas quanto aos fatos e a culpa da reclamada, por omissão, bem como por ação de empregados, na forma do artigo 932, II do Código Civil, pois, ainda que não realizassem os atos no exercício da função, o faziam em horário de trabalho.

Ora, é evidente que as ofensas proferidas constantemente geraram danos da natureza moral no reclamante, de forma que tenho como presentes os demais requisitos da responsabilidade civil.

Condeno, portanto, a reclamada, a indenizar os danos morais sofridos pelo reclamante, em montante que passo a arbitrar.

Um dos primeiros critérios que a doutrina sugere para a fixação do quantum indenizatório é o fixar um montante que penalize o agressor sem promover o enriquecimento sem causa da vítima. Ora, este critério se apresenta como de difícil aplicação no Direito Laboral, dada a desigualdade econômica brutal que normalmente se constata entre o trabalhador e o empregador.

No presente caso, por exemplo, é claro que qualquer valor que penalize a reclamada de maneira a motivá-la a tomar atitudes a fim de evitar o problema irá gerar enriquecimento do obreiro (e o contrário também é verdadeiro: qualquer valor que não gere nenhum enriquecimento ao trabalhador não será suficiente para cumprir sua função de estimular a empresa a evitar novas situações como esta).

Assim, buscando a compensação do dano sofrido, fixo como quantum indenizatório o montante de R$ 50.000,00, que entendo suficiente para o cumprimento de sua função quanto à ex-empregadora, sem gerar enriquecimento excessivo em favor do trabalhador.

 

Honorários assistenciais

Presentes os requisitos legais, defiro a paga de honorários assistenciais, desde já arbitrados em 15% sobre o valor da condenação (Súmulas 219 e 329 do C.TST).

ISTO POSTO, e tudo na forma da fundamentação supra, rejeito as preliminares e, no mérito, julgo PROCEDENTE IN TOTUM o pedido formulado por JOSÉ APARECIDO MARTINS para condenar BORG WANER AUTOMOTIVE BRASIL LTDA a pagar-lhe indenização por danos morais no montante de R$ 50.000,00 e honorários assistenciais de 15% sobre o valor da condenação.

A correção monetária incidirá a contar da presente data.

Os juros de mora incidem a partir do desligamento do obreiro, data última em que culminou o dano produzido, na forma do artigo 398, do Código Civil de 2002.

As verbas deferidas têm natureza indenizatória, não havendo que se falar em incidência de contribuições previdenciárias ou fiscais.

Observe-se o disposto no artigo 475-J, do CPC, aplicável subsidiariamente ao processo do trabalho por força do que reza o artigo 889, da CLT.

Atentem as partes para o disposto no artigo 538, § único do CPC. Desde já deixa o Juízo registrado o entendimento de que o magistrado não está obrigado a rebater um por um os argumentos defensórios e que não são admitidos embargos declaratórios para fins de pré-questionamento na primeira instância.

Cumprimento no prazo legal.

Custas, pela reclamada, sobre o valor provisoriamente arbitrado à condenação de R$ 60.000,00, no importe de R$ 1.200,00.

Cientes as partes, na forma da Súmula 197, do C.TST.

Nada mais.

 

 

 

 

LUCIANA CAPLAN

Juíza do Trabalho

 

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