Sexismo, abuso e cyberbullying: A Netflix não cansa de errar nos filmes adolescentes

As mensagens que Crush à Altura, A Barraca do Beijo e Sierra Burgess É Uma Loser passam para o público estão (muito) longe de serem ideais

Por Yolanda Reis, da Rolling Stone

Protagonistas de Sierra Burgess É Uma Perdedora, Crush à Altura e A Barraca do Beijo (Fotos: Divulgação / Netflix)

Crush à Altura, estreia de Nzingha Stewart em longas-metragem (antes, dirigiu episódios de How To Get Away With Murder e Grey’s Anatomy), é o mais novo filme adolescente da Netflix. Vem depois de alguns sucessos de público com a mesma temática, como A Barraca do Beijo e Sierra Burger É Uma Loser. E não só a adolescência é ponto comum nas três produções: o roteiro problemático também.

A começar pelo novo lançamento; Crush à Altura é, acima de tudo, um grande clichê. Se você já viu algumas das histórias adolescentes mais populares dos anos 1990 e 2000, não precisa realmente assistir o novo filme da Netflix – não vai encontrar novidade alguma, em absolutamente nenhuma parte de seu roteiro.

O filme conta a história de Jodi (Ava Michelle), uma menina de 16 anos que tem 1,86m e um complexo pela sua altura, além de ser excluída na escola (parece a Princesa Amelia de O Diário da Princesa, 2001).

O sonho dela é arranjar um namorado mais alto que ela – e ele aparece na forma de Stig (Luke Eisner), estudante de intercâmbio da Suécia – lindo, logo conquista todas as meninas do colégio, inclusive Jodi (já vimos isso em A Nova Cinderela, 2004).

Mas ela está determinada a ganhar o menino. Para isso, resolve pedir ajuda de sua irmã, bonita e popular, para dar uma repaginada no visual (o que é mais Ela é Demais, 1999, do que uma mudança completa de visual?). Tudo isso, é claro, enquanto o melhor amigo da protagonista esconde o amor devastador que sente por ela (alô, Lizzie McGuire, 2003).

Mas, ao invés de olhar para esses clichés de filmes antigos e consertá-los, a Netflix os copia. Pior ainda, vai na contramão do progresso – e repete cada um dos aspectos idiotas e sexistas de filmes antigos que achávamos já ter superado em 2019 (como, por exemplo, uma menina precisando mudar completamente seu jeito e seu visual para ser aceita em público, ou como isso, na verdade, é uma boa ideia se for para conquistar um cara que antes não estava nem aí para ela).

Em uma época em que ensinamos meninas adolescentes a serem empoderadas e seguras com elas mesmas, a Netflix parece querer reverter o quadro. Fez isso, também, em A Barraca do Beijo – em uma cena, a protagonista Elle (Joey King) precisa usar um uniforme antigo para ir à escola, mas como cresceu durante as férias, suas saias estão bem curtas. Chegando no colégio, chama a atenção de todos os meninos (a câmera, claro, foca na bunda dela, mesmo a personagem tendo apenas 16 anos) – e o falastrão Tuppen (Joshua Daniel Eady) não pensa duas vezes e passa a mão, sem permissão, no corpo na menina.

E sabe o que acontece em seguida? (Não, não é algo ensinando meninas de 16 anos, público-alvo do filme, a não deixar ninguém tocá-las sem permissão). Elle vai a um encontro com Tuppen – e o beija!

Em Sierra Burgess É Uma Loser, o que acontece talvez seja até mais perturbador. Em um spin-off moderno de Cyrano de Bergerac (que, diga-se de passagem, viveu nos anos 1600), a protagonista Sierra (Shannon Purser) é uma garota com uma autoestima baixíssima que, para variar, tem uma queda pelo garoto mais popular do colégio, Jamey (Noah Centineo), quarterback do time de futebol. A vida dela é atormentada por Veronica (Kristine Froseth), a líder de torcida loiríssima e belíssima.

Para tirar uma com Sierra, Veronica dá o número da protagonista à Jamey, mas ele acha que o telefone é, na verdade, da líder de torcida. Sierra, porém, não esclarece isso quando os dois começam a trocar mensagens – e pior, quando vão a um encontro, convence Veronica (de quem ficou amiga de repente) a fingir ser ela.

Quando Jamey fecha os olhos para um beijo, Veronica se afasta e Sierra o beija – de modo totalmente não consensual – e não conta a verdade depois. Então, quando em outro dia Jamey beija Veronica (afinal, acreditava piamente que se amavam), Sierra surta. Ela se vinga humilhando publicamente a amiga, mostrando para todos na escola as conversas de Veronica com o ex-namorado. Os três acontecimentos propagam, em sequência, assédio sexual, rivalidade feminina e cyberbullying. Um pouco assustador.

Em discursos montados para adolescentes, então, a Netflix insiste em alguns pontos tão ultrapassados que soam absurdos. Não, não está ok, para um menino, passar a mão no corpo de uma menina – e não está ok ela não ter espaço para reagir.

Não é engraçado que uma garota seja atormentada e humilhada por um garoto para, depois de colocar um rímel, acabar em seus braços, feliz da vida.

Não é legal pensar que uma menina que não atenda padrões de beleza deve odiar todas aquelas consideradas bonitas no geral – e vice e versa.

Não devemos reforçar como, para uma adolescente conquistar o menino que gosta, ela deve se embebedar e tirar o vestido na frente de todo o mundo. E definitivamente não é legal ensinar que uma adolescente não deve gostar de si mesma pelo que é, e sim virar outra pessoa só para conseguir um namorado. Sendo ela alta, gorda, feia, tímida. Não devia ser essa a mensagem.

O serviço tem, é claro, alguns bons filmes do gênero. O inocente Para Todos os Garotos que Já Amei, por exemplo, no qual Lara Jean (Lana Condor) vê todas as suas cartas com declarações de amor (para, claro, todos os garotos que ela já amou) serem enviadas, ou o poderoso sci-fi A Gente Se Vê Ontem, que conta a história de CJ (Eden Duncan-Smith) e Sebastian (Dante Crichlow), uma garota e um garoto do Bronx, bairro de periferia, criando uma máquina do tempo para tentar evitar a morte do irmão de CJ, que levou um tiro da polícia.

Por seu potencial criativo de séries incríveis – boa parte delas estreladas por adolescentes, como Stranger Things, Everything Sucks, Sex Education, Chambers, e muitas, muitas outras – é surpreendente que a Netflix não saiba fazer filmes para jovens. E, sim, talvez seja hora da empresa dar um passo atrás, reavaliar em que o cinema já errou, e a partir disso tentar fazer algo que valha a pena ser visto – porque entre Crush à Altura e A Barraca do Beijo, fica claro como eles estão errando bastante.

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