Simone Biles é gigante no compromisso contra cultura de violência sexual

Os Jogos Olímpicos têm resgatado a emoção do brasileiro. Com tantos meses sob pandemia, restrições, isolamento, com tanto tempo sem abraço e sem afeto, na rotina triste de tantas perdas, a Olimpíada de Tóquio tem sido capaz de nos devolver a alegria. Nesse intervalo de duas semanas, foi possível retomar até a torcida pelo Brasil.

A competição mundial em Tóquio trouxe também outras questões que têm sido tratadas em silêncio — quando tratadas — e sem o devido cuidado. A desistência da ginasta americana Simone Biles de participar das Olimpíadas obriga diversas instâncias em vários países a pensar sobre a cultura do esporte que encobre casos de violência sexual contra crianças e adolescentes.

Biles teve a coragem de sustentar que o trauma é tão devastador que ele se apresenta a vida inteira.

Simone Biles não desistiu apenas por conta da pressão que é ser a melhor ginasta do mundo, a única capaz de realizar o “yurchenko double pike”, e representar os Estados Unidos nos aparelhos e tablados do ginásio japonês, lidando com as expectativas de seu país e do mundo. A jovem negra deixou o campeonato também pelo trauma que ela carrega e afeta sua saúde mental. Simone tem que lidar com sintomas como ansiedade, medo, baixa autoestima e pouca autoconfiança.

Ela é a única vítima dos abusos sexuais cometidos por Larry Nassar — ex-médico da seleção de ginástica artística dos Estados Unidos — que continua competindo em provas de alto rendimento.

Nassar violentou mais de 150 meninas por cerca de 20 anos. Nenhuma instituição do esporte o denunciou.

Foi preciso que a história das vítimas fosse contada pelo jornal The Indianapolis Star, em 2016, e ganhasse comoção pública para que a justiça fosse acionada. A publicação aconteceu durante os Jogos Olímpicos do Rio. Até lá, foram anos de acobertamento dos técnicos, da Federação de Ginástica, da Universidade de Michigan (onde Nassar trabalhava) e também do Comitê Olímpico.

O sistema protegeu Nassar e expôs crianças e adolescentes a um predador sexual. É uma ferida que as vítimas desse tipo de abuso precisam lidar a vida inteira.

Uma das meninas, Chelsea Markham, violentada aos 10 anos, ficou tão deprimida que tirou a própria vida aos 26. Outras relatam ataques de pânico, estresse pós-traumático e outros sintomas ligados à depressão grave. Simone Biles é uma sobrevivente.

Que sistema é esse que permite que esse tipo de violência ocorra com tanta gente por tanto tempo? O fato de ele ser católico e pai de duas meninas foi o que lhe conferiu o caráter “ilibado” que associavam a ele a ponto de esconder seus crimes?

A prática de um esporte como a ginástica artística ou o futebol ou a natação, que envolve crianças e adolescentes, precisa de protocolos de proteção contra esse tipo de abuso. Nenhuma medalha vale essa dor expressada por Simone.

“Após uma avaliação médica adicional, Simone Biles desistiu de sua primeira competição final individual. Apoiamos integralmente a decisão de Simone e aplaudimos sua coragem em priorizar seu bem-estar. Sua coragem mostra, mais uma vez, porque ela é um modelo para tantas pessoas”, disse a equipe em um comunicado divulgado no Twitter. Esse apoio da equipe foi fundamental e talvez represente, finalmente, uma mudança de postura.

Esses casos acontecem quando há controle total e manipulação por parte dos adultos sobre a vida dos atletas. Pode ocorrer em qualquer lugar, com qualquer modalidade. Com as crianças e adolescentes, como são pequenos, nem sabem que aquilo é violência.

No caso das meninas da ginástica, poucas comentaram entre si, um comportamento que costuma ocorrer com vítimas de abuso sexual. Tinham dúvidas se era ou não um tratamento “diferente”. Tinham medo e vergonha. Tornar pública a denúncia foi um ato de extrema coragem das ex-ginastas.

Nessa espiral de omissão, quando os adultos em quem se confia não os protegem, há uma enorme confusão inclusive sobre o que é amor. Essa dúvida se reflete pela vida inteira. O ato de Simone Biles foi, portanto, de grandeza, de coragem e de compromisso para que essa cultura que acoberta a violência sexual nunca mais ocorra.

“Eu estou feliz demais. Passei por muita coisa. Eu tinha essa Olimpíada como meu objetivo, queria fazer o meu melhor e brilhar da maneira possível. E eu acho que brilhei! Todas as atletas que passaram pela ginástica feminina estão aqui nesta medalha, elas fazem parte desta história. Esta medalha é mais um passo desta geração, e espero que as próximas consigam suas conquistas também. Eu não seria nada sozinha”, disse Rebeca Andrade, medalha de prata pela equipe brasileira.

É também por essa atitude de Simone em se retirar da competição com a cabeça erguida que tantas meninas se inspiram nela. Rebeca, que competiu na modalidade da qual Simone desistiu, brilhou pela colega. Simone assistiu vibrando.

Denuncie e procure ajuda

O Disque 100 e o Ligue 180 são serviços gratuitos para denúncias de violações de direitos humanos e de violência contra a mulher, respectivamente.

Qualquer pessoa pode fazer uma denúncia pelos serviços, que funcionam 24h por dia, incluindo sábados, domingos e feriados. Além de cadastrar e encaminhar os casos aos órgãos competentes, a Ouvidoria recebe reclamações, sugestões ou elogios sobre o funcionamento dos serviços de atendimento.

Caso você esteja passando por um momento difícil e tenha tido recentemente ideias de atentar contra a própria vida, procure ajuda. Além dos CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) de cada cidade, o CVV (Centro de Valorização da Vida) funciona 24 horas por dia (inclusive aos feriados) pelo telefone 188, e também atende por e-mail, chat e pessoalmente.

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