Por Brenna Bhandar e Denise Ferreira da Silva, no Critical Legal Thinking, em 21/10/13 | Trad. UniNômade BrasilEsta é uma resposta ao artigo de Nancy Fraser publicado no The Guardian, em 2/10/13, e republicado pela UniNômade: “Como o feminismo se tornou a empregada do capitalismo; e como resgatá-lo“.
Do Uninômade
No recente texto “Como o feminismo se tornou a empregada do capitalismo, e como resgatá-lo”, Nancy Fraser usa seu próprio trabalho em teoria política para argumentar que o feminismo, na melhor das hipóteses, foi cooptado pelo neoliberalismo e, na pior, se tornou um empreendimento do projeto neoliberal. O que à primeira vista parece uma autorreflexão razoável, uma que assume o ônus e a responsabilidade pelas alianças do passado e pelas celebrações de manobras estratégicas em nome da melhoria da vida das mulheres; num segundo momento, acaba revelando a miopia inata e repetitiva do feminismo branco em levar em conta, conversar e pensar junto com as feministas negras e terceiromundistas.
Escrevendo desde o começo da década de 1970, essas acadêmicas e ativistas têm sistematicamente desenvolvido uma crítica feminista não somente sobre o capitalismo de estado, como também do capitalismo globalizado que se apoia no legado colonial. Esses feminismos não priorizaram o “sexismo cultural” em detrimento da redistribuição econômica. A literatura é vasta, com uma miríade de exemplos. De modo que é bastante cansativo quando feministas brancas falam da “segunda geração do feminismo” como se fosse o único “feminismo”, e usam o pronome “nós” para chorar o fracasso de suas lutas. Deixe-nos apenas dizer que não existe algo como o “feminismo”, que seja sujeito de qualquer sentença para designar uma posição única na crítica do patriarcado. Tal posição está fraturada desde pelo menos quando a ativista negra Sojourner Truth disse: “Não sou uma mulher também?” Existe, no entanto, uma posição-sujeito feminista, aquela que Fraser está lamentando, que se sentou muito confortavelmente na cadeira do sujeito emancipado, autodeterminado. Mas isso não surpreende, pois tanto o feminismo dela e o neoliberalismo compartilham o mesmo núcleo liberal, que feministas negras e terceiromundistas identificaram e expuseram desde muito cedo na trajetória dos feminismos.
O trabalho de A.Y. Davis, Audre Lorde, Himani Bannerji, Avtar Brah, Selma James, Maria Mies, Chandra Talpade Mohanty, Silvia Federici, Dorothy Roberts e um monte de outras destroçaram a natureza excludente e limitada dos esquemas conceituais desenvolvidos pelas feministas brancas do mundo anglófono. Essas acadêmicas e ativistas criaram esquemas de análise que, simultaneamente, encararam o desafio de fazer uma dramática correção tanto da teoria anticolonial e marxismo negro [Black Marxism], que falharam fundamentalmente em teorizar gênero e sexualidade, quanto do pensamento feminista socialista e marxista, que continua a falhar, de muitas maneiras, em dar conta da raça, das histórias da colonização e das iniquidades estruturais entre os estados-nações ditos desenvolvidos e aqueles em desenvolvimento. E sim, embora Mies, Federici e James sejam brancas, as feministas marxistas terceiromundistas aspiram por uma solidariedade política além da linha de cor.
As acadêmicas de que falamos desenvolveram críticas consistentes de formas capitalistas de propriedade, troca, trabalho pago e não-pago, junto de formas culturalmente impregnadas e estruturais da violência patriarcal. Peguemos o exemplo do estupro e da violência contra a mulher. No seminal Women Race and Class [Raça e Classe das Mulheres], A.Y. Davis argumentou energicamente que muitas das mais urgentes e contemporâneas lutas políticas das mulheres negras estão debruçadas sobre tipos de opressão sofridos na escravidão. O estupro e a violência sexual são problemas de mulheres de todas as classes, raças e sexualidades, como Davis apontou, mas assumem uma valência diferente para negras e negros. O mito do estuprador negro e do macho negro hipersexual violento causou montes de linchamentos durante o período anteguerra nos EUA. Esse persistente mito racista confere valor explicativo à super-representação de homens negros em prisões condenados por estupro, e levou à relutância de parte das mulheres afro-americanas em se envolver no começo do ativismo feminista, mais concentrado na aplicação da lei e no sistema penal (Davis, 1984). A expropriação do trabalho negro radicada na lógica da escravidão se repete na expropriação do trabalho dos presos na era pós-escravidão e, hoje, na endemia de trabalho prisional (Davis, 2005).
A violência sexual é, assim, entendida como derivada da escravidão e da colonização, afetando tanto mulheres quanto homens. A história dos corpos negros femininos como mercadorias à disposição do prazer dos homens brancos permanece como um traço racial, social e psíquico da sociedade afro-americana contemporânea. No tocante às indígenas americanas, os estereótipos da era colonial, a squaw [algo como “indiazinha”, pejorativo para mulher indígena sexualmente disponível], continuam nos imaginários racializados contemporâneos da sociedade americana, retratando mulheres indígenas como vulneráveis a formas de violência sexual que sempre foram raciais, recordando padrões de violência presentes quando do desapossamento de suas terras e, sim, suas práticas culturais (ver P. Monture-Angus, Kim Anderson, Sherene Razack).
Sugestões recentes que as feministas deveriam se concentrar no trabalho não-pago, implicado nos trabalhos relacionados com o cuidado, foram analisadas por Patricia Hill Collins, em Black Feminist Thought: knowledge, power and consciousness [Pensamento feminista negro: conhecimento, poder e consciência]. Ela enfatiza que, para as mulheres afro-americanas, o trabalho em casa em prol do bem estar das famílias pode ser entendido por elas como uma forma de resistência a forças econômicas e sociais que entram em conluio para prejudicar as crianças e famílias afro-americanas. Feministas negras também conduziram a campanha por salários ao trabalho doméstico, desafiando as normas burguesas da economia burguesa. Seguindo A.Y. Davis, notamos que as feministas brancas precisam reconhecer quando elas se envolvem em estratégias políticas que as feministas negras e terceiromundistas já têm teorizado e praticado há muito tempo.
Encerrar a opressão, a violência contra a mulher, a violência contra o homem, particularmente na versão liberal, significa abraçar o pensamento histórico, materialista, antirracista das feministas marxistas negras e terceiromundistas. Seriam as feministas brancas que insistem em acrescer a palavra “raça” e “racismo”, em suas abordagens ao feminismo típicas da esquerda liberal, deliberadamente cegas e surdas? Seriam elas incapazes de ceder terreno ao feminismo negro porque significaria a renúncia de certo privilégio racial? A invocação persistente do universalismo, que é o núcleo do feminismo branco, invisibiliza as experiências, os pensamentos e o trabalho das feministas negras e terceiromundistas, de novo e de novo. Acabou o tempo!
Tradutor: Bruno Cava.