O branco construiu-se como o centro das relações, o ser legítimo, o oficial. Os impactos disso, nas relações quotidianas, parece passar despercebido para a grande maioria. Mas, para nós, negras e negros, o seu “outro”, não. No livro “O pensamento branco”, Lilian Thuram, ex-jogador da seleção francesa e escritor, nascido em Guadalupe, traz um diálogo com um amigo de infância que ilustra muito bem o que branco pensa de si mesmo: Thuram lhe diz:
-Pierre, você tem o sentimento de ser branco?
-O quê? Não entendi.
-Pierre, você concorda que eu sou negro?
– Bem, sim.
– Se eu sou negro, você é o que?
– Bem, eu sou normal.
Se ele é o “normal” e, todos os outros racializados, a anomalia, ele comporta-se como se o seu lugar “natural” no mundo fosse o do protagonismo e, o nosso, aplaudi-lo e sustentá-lo nesta posição.
Fui convidada por pesquisadoras da Universidade Federal de Goiás, para uma conversa sobre o meu livro “Cartas a um homem negro que amei”. O grupo de estudos, chamado “Geninhas”, é composto por mulheres negras e, naquele dia, abriram para outras participantes. Depois que falei da minha escrita, da trajetória que culminou nas cartas e das questões que levanto, abrimos para perguntas. Nesse momento, uma mulher branca, burguesa, pediu a palavra. Ao invés de fazer uma pergunta, ela fez outra palestra, que não acabava mais, enquanto as mulheres negras, impacientes, queriam perguntar e discutir o livro. A sua intervenção iniciou-se da seguinte forma: “onde estão as pessoas brancas aqui presente? Eu quero ver os rostos. Onde vocês estão? Somos somente duas?” O grupo em questão é de pesquisadoras negras que estudam mulheres negras invisibilizadas na história. E prosseguiu, dirigindo-se a mim, nos seguintes termos: “Você já leu o livro de fulana de tal?” Respondi com um curto “não”. Ela completou: “então tem que ler”. A mulher começou a elencar diversas feministas brancas que, segundo ela, eu deveria conhecer, ao passo que eu tinha acabado de discorrer sobre mulheres negras esquecidas pela história. A sua “palestra” prosseguia sob inquietação e surpresa das demais participantes.
A feminista branca não se colocou na posição de escutar e aprender, mas retomou o que ela está acostumada, ou seja, o lugar de falar e ensinar, repetindo a dinâmica histórica do apagamento de mulheres negras. Após perceber que ela não pararia sozinha, disse-lhe que outras mulheres queriam falar. Ela calou-se contrariada e, no final do encontro, escreveu para a organizadora do evento dizendo ter se sentido muito triste, pois eu a tinha ignorado. Ainda perguntou o que tinha feito de errado. A organizadora, didaticamente, explicou-lhe o que ela não conseguia ver e compreender: “fulana, não era o seu momento de brilhar”. Surpreendentemente, depois de uma longa conversa, ela reconheceu o comportamento dizendo: “sim, estou acostumada com tapete vermelho”. É raro que pessoas brancas admitam isso. Foi um encontro muito profícuo, para nós, mulheres negras e, para ela, apesar do cansaço que isso nos traz cada vez que nos deparamos com situações semelhantes.
Em 2020 fui convidada pela rede de professores de educação física da prefeitura de Jundiai, interior de São Paulo, para uma aula sobre “Corpos na pandemia”. Fiz uma comparação entre o Brasil e a França, país onde moro. Após a minha exposição, abrimos para perguntas. Novamente, um dos professores, branco de meia-idade, pediu a palavra. A sua intervenção foi a seguinte: “Eu gostaria de sugerir-te um livro do sociólogo Domenico de Masi, já que você morou na Itália”. Respondi-lhe: “Conheço o sociólogo pessoalmente”. Ele deu um sorriso sem graça, enquanto eu esperava pela pergunta que não chegou. Junta-se à brancura a questão de classe e gênero, o problema fica ainda mais evidente. Alguns sujeitos não aceitam aulas de mulheres negras, geralmente brancos e brancas das classes médias e burguesas, pois, para eles, somos nós que deveríamos escutá-los e deles aprender.
Em palestras, conferências ou discussões onde homens brancos devem falar, reparem, eles pedem a palavra primeiro, com a desculpa que têm outros compromissos para, logo que terminam, escaparem. Sobretudo se a fala sucessiva for de uma mulher. O que isso revela? O pensamento de que não têm que nos escutar ou nada a aprender. Na maioria das vezes, eles não aceitam convites somente para estar na plateia, sem protagonismo, e buscam o holofote de qualquer maneira, como inventando perguntas para, em seguida, palestrar.
Quando não se veem nas temáticas que abordamos, a mesma obsessão se verifica. Encontrei várias pessoas brancas pelo caminho que, quando falo da solidão de mulheres negras, buscam ocupar lugar na discussão, dizendo: “Ah! Mas acho que você se limitou às mulheres negras, poderia falar de todas”. Esse “todas” quer dizer: “poderia falar de nós, mulheres brancas”. Até como assunto, reivindicam o tempo todo estar no centro, claro, de forma positiva e como liderança. Sem contar sobre “vidas negras importam”, uma quantidade enorme de mulheres brancas, feministas, de esquerda diz: “todas as vidas importam”. Uma delas teve a ousadia de dizer-me que os meus livros e a minha escrita deveriam ser dirigidos a “todos”. Mas quem disse que não o é? O fato de falar de negritude, de escolher uma editora negra, de apontar racismo, não diz respeito também aos brancos? Falar para “todos”, na concepção de brancos, é parar de falar de negros, de nós e, a sensação é que lhes roubamos a cena, o tão buscado protagonismo que deve ser colocado em dia para que a branquitude sinta-se assegurada.
Mesmo diante da opressão, quando negros e negras falam de racismo, que somos vítimas, até aí querem disputar conosco o lugar da dor. Quando falamos do que vivemos, não faltam vozes para nos interromper: “eu também já sofri discriminação. Chamavam-me de branquela na escola”. Não há momento em que não tentem virar a atenção para si mesmos, nas relações interpessoais e nas discussões públicas. Um amigo, negro, chegou a dizer ao seu companheiro branco: “fulano, não é sempre sobre você”.
Pessoas brancas, economicamente privilegiadas, como disse a mulher que citei no início, acostumadas com tapete vermelho, precisam urgentemente voltar para si mesmas e, num processo que pode ser doloroso, praticar a escuta das minorias, desligar os holofotes, sentar em espaços que não requer delas o brilho e, simplesmente, estar. Tem sido cansativo para nós, além de lidar com o racismo e a misoginia, ter que ensinar a brancos que, não há nada de natural em querer ser o centro da atenção, sempre.
Pessoas brancas, desliguem os holofotes, o excesso de luz vos está cegando.
Fabiane Albuquerque, escritora, doutora em sociologia
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