O caderno de cultura do jornal O Tempo, de Belo Horizonte, publicou no dia 05 de agosto deste ano, matéria de Gustavo Rocha intitulada “Uma nova geração de dramaturgos — cena de BH é tomada pela multiplicidade de novos autores”.
Por Cidinha Da Silva, no Midium
Foto: Fer Nanda/Reprodução/Facebook
São listadas 11 pessoas dessa nova geração, entre 25 e 40 anos. 14 fotografias ilustram a reportagem, 7 dos/as artistas e 7 de espetáculos.
Anderson Feliciano, o dramaturgo negro do grupo, não tem imagem pessoal ou de trabalho destacada. Mas, você poderia refutar, foram apenas 7 fotos de dramaturgos/as e eram 11 pessoas citadas, você mesma contabilizou, Cidinha. Ok, não foi todo mundo que apareceu nas fotos, concordo, contudo, escolheram 7 imagens de espetáculos e, de novo, nada do Anderson Feliciano apareceu.
Será que o jornalista, ou quem escolheu as imagens, ou quem editou a matéria, pensou: o Anderson Feliciano já teve algumas linhas na reportagem, não precisa de imagem; ou, ele está começando, nem deve ter um bom arquivo de fotos, não vamos perder tempo solicitando fotografias que ele não deve ter. Se isso tiver ocorrido, talvez o Anderson tenha sido lembrado como uma figurinha negra que precisava constar para que a poderosa cena do teatro negro de BH não se insurgisse contra a ausência total de negros. Um coringa para calar a voz da Segunda Preta? Da Aquilombô — mostra de artes negras?
E nós, que percebemos e lamentamos profundamente a lacuna de imagens do Anderson e/ou do seu trabalho como dramaturgo prolífico, teríamos sido inoculados pelo vírus da teoria da conspiração?
São questões de resposta simple, sem grande sofisticação de raciocínio.
As primeiras lições da cartilha da discriminação racial via subalternização das pessoas negras, ensina como colocá-las para escanteio, e como fazer isso de uma maneira “natural, sem que pareça ter havido discriminação (ato deliberado de excluir, invisibilizar, prejudicar, achatar as pessoas por pertencerem a certos grupos). Ora, tratou-se de um esquecimento, ou escolha aleatória, não dava para colocar todo mundo. Ocorre que é o negro quem fica de fora e não é uma única vez, não é de vez em quando. Trata-se de casualidade tornada norma, e Anderson Feliciano foi simplesmente a bola da vez.
Vamos ver se explico melhor: pode ser que nenhum dos profissionais citados, o jornalista, o responsável pela escolha das imagens, ou o editor tenha deliberado “vamos deixar imagens do Anderson e de seu trabalho de fora”, pode ser. Mas a cartilha ensina de maneira muito eficaz como fazê-lo e se faz tanto ao longo da vida, que deixar os negros de fora torna-se quase instintivo.
Outro exemplo? Em show recente de Jorge Benjor na Concha Acústica, em Salvador, Bahia, na hora de cantar a música de encerramento que parecia se chamar “gostosa”, o cantor convocou 9 “mulheres gostosas” para subirem ao palco. Sua equipe buscou então 8 mulheres brancas e uma negra. Um grupo de negras que assistia ao show se rebelou e exigiu também subir ao palco, porque a Bahia é preta e elas não admitiriam que sua “gostosura preta” não fosse enaltecida na Bahia preta.
Outro? No seriado Orange is the New Black, a personagem patricinha-loira, cansada de ser sacaneada pelas colegas negras pergunta a uma delas: por que elas fazem isso comigo? E a outra explica: não é com você exatamente, é com o que você representa, entende? Você sempre teve tudo lá fora e a gente nunca teve nada. Você está sofrendo aqui dentro, elas estão te humilhando, se vingando, mas quando você voltar lá para fora você continuará a ter tudo, sua família tem dinheiro e vocês darão um jeito de todo mundo esquecer que você foi presidiária. Você entende? Nós (as negras) não representamos nada lá fora e isso foi a vida inteira. Você só não é nada aqui dentro, mas se você quiser trocar de lugar comigo, eu troco…
A personagem branca olha com aquela cara de quem não está entendendo tudo, mas está descobrindo um mundo. Mundo que ela pode se dar ao luxo de nunca ter compreendido o modo de funcionamento em desfavor das negras. Será que o pessoal do jornal já conseguiu entender do que estamos tratando?
De nossa parte, sabemos que não só o genocídio, o extermínio físico nos mata. Essas atitudes subjetivas, simbólicas e reiteradas vão nos destruindo também. É certo que reagimos, resistimos, nos indignamos e tudo o mais, mas somos diminuídos em nossa humanidade a cada atitude de discriminação racial, consciente ou não, não importa (e não nos encham a paciência para educarmos os brancos todo o tempo). Importa que isso nos aniquila aos poucos, rouba a nossa saúde e faz com que tenhamos uma expectativa de vida menor do que a das pessoas brancas, ainda que sejamos os pretos e pretas que saíram da linha da pobreza e de suas consequentes mazelas.
O apagamento de Anderson Feliciano da reportagem não tem tanto a ver com ele, o indivíduo Anderson, está enraizado no que ele representa, na comunidade de destino à qual pertence e aos desdobramentos desse pertencimento na sociedade racista e de mentalidade escravocrata desse país chamado Brasil.
Imagem: Anderson Feliciano, dramaturgo e ator.