Boa parte do funk é, sim, expressão do horror e da barbárie que nos assola. Mas é possível criticá-lo sem criminalizar a periferia? Uma reflexão de Acauam Oliveira
Por Acauam Oliveira, do Farofafá
Fotos de perfil no Facebook com filtro para protestar contra o estupro coletivo de uma jovem de 16 anos – Foto: Reprodução Facebook
Diante da comoção geral ocasionada pelo caso estarrecedor de estupro de uma jovem de 16 anos por 33 homens no Rio de Janeiro, diversos textos e artigos passaram a enfatizar a necessidade de tratarmos da cultura do estupro vigente no Brasil. Como era de se esperar, o debate se polarizou entre visões mais progressistas – com o levantamento de centenas de dados estarrecedores e exposição sistemática das práticas de perpetuação do estupro e proteção aos estupradores – e olhares mais conservadores, dos mais “leves” aos mais agressivos. Entre esses, o posicionamento mais comum foi o já esperado (e caricato) argumento de que isso seria uma “invenção feminista”.
Contudo, em certo momento os dois campos passaram a questionar, com propósitos diferentes, qual seria o papel do funk carioca na cultura do estupro, dado o fato de que a tragédia ocorreu em uma comunidade no Rio de Janeiro. Dentre as questões colocadas, uma que me parece fundamental foi lançada pela direita, evidentemente em tom de provocação: o desconforto e mesmo incapacidade que a esquerda tem em apontar e, sobretudo, lidar com os problemas do funk carioca. E aqui irei acrescentar um depoimento pessoal. Estava procurando artigos sobre a relação entre funk e machismo para escrever esse texto, e me surpreendi por não ter encontrado praticamente nada em sites de esquerda. Quase toda discussão nesse sentido estava no campo da direita, enquanto os sites de esquerda focavam muito mais nas relações entre funk e feminismo. Não que não exista reflexão sobre isso entre a esquerda: mas o foco hegemônico não é esse.
Ora, entende-se perfeitamente esse movimento em termos políticos: a esquerda busca se aproximar da cultura periférica, pelo menos intelectualmente, ao passo que a direita quer contribuir com a criminalização das periferias. Entretanto, não deixa de ser problemático a imagem do funk que aparece em grande parte dessas reflexões, sobretudo quando pensamos em termos de uma aproximação política/cultural real. Cabe nos perguntarmos: onde é que existe esse funk majoritariamente feminista que parece existir apenas no reino encantado da luta de classes progressista? Novamente, não existe problema nenhum em valorizar as produções progressistas em termos de certa disputa por hegemonia – quanto mais visibilidade tiver o funk progressista, melhor. O problema está no processo de distorção da realidade que dificulta a compreensão da matéria estética e cultural. Seleciona-se apenas aquilo que interessa, o que demonstra uma fragilidade profunda em se lidar com a cultura concreta do funk, aquela que em sua maioria é, sim, violenta e misógina.
Com sua pressa em se distanciar dos conservadores, o discurso progressista acaba por sustentar certa imagem romantizada do funk que no limite irá servir aos interesses… conservadores. Repete-se assim o gesto romantizado de José Ramos Tinhorão denunciado por um Caetano Veloso ainda antes do tropicalismo. A pureza do agente popular marginalizado torna-se o espelho cristalino da esquerda revolucionária sem muito horizonte de revolução para além dessas miragens compensatórias. É absolutamente necessário, portanto, sair desse círculo vicioso narcisista e tratar o funk com a complexidade que ele exige, compreendendo eventuais avanços e regressos como partes de um mesmo sistema.
Dito isso, podemos afirmar que o funk participa, sim, da cultura do estupro. É relativamente fácil de estabelecer essa relação em diversas canções, mas creio que um único exemplo, bastante significativo, é suficiente. A letra de “Sabotaram Meu Copo” , cantada por MC Priscila em 2013, é uma descrição muito próxima desse crime de 2016, no sentido de contar a história de uma mulher que foi drogada e estuprada por diversos homens. O agravante é que na canção o estupro é narrado como se fosse um privilégio para mulher, que participou de uma “treta de luxo”. Os exemplos, entretanto, são praticamente inumeráveis (pesquise por “Novinha, Vê se Não Mexe Comigo”, “Cuquete”, “Predador de Perereca”, “Joga a Novinha pro Meio do Furdúncio”, que apresenta os versos “De 14 eu tô botando/ os pais não tô respeitando/ que se foda a porra toda/ não tem festa de 15 anos” etc. etc. etc.).
Não devemos, diante desses casos, sustentar a “pureza” e “inocência” do funk enquanto manifestação cultural. É necessário reconhecer nele muitas vezes a expressão de puro horror, da mesma forma que a esquerda se revolta contra os discursos reacionários feitos pelos “vilões” de sempre. Há bem pouco ou quase nada a ser celebrado em uma canção como “Sabotaram Meu Copo” (da mesma forma como a criatividade do MC Bin Laden e algumas questões colocadas por MC Carol são muito bem vindas, bem como o próprio desenvolvimento do funk como linguagem). A valorização – no limite, liberal – da “diversidade cultural” nesse caso opera mediante a infantilização daquilo que aparentemente se defende: é porque não nos diz respeito que o funk deve ser aceito e protegido enquanto expressão cultural.
Mas ao contrário do pressuposto dos defensores “culturalistas” o que se deve rejeitar em uma canção como essa não é a identidade periférica em construção (afinal, quais vínculos comunitários poderão ser gestados a partir daí?), e sim a celebração do estupro, que precisa ser nomeada e encarada enquanto tal, como expressão de horror daquele outro que está em nós. É só assim, inclusive, que o funk revela sua força, quando passamos a encará-lo não como uma expressão cultural qualquer da periferia, e sim como um olhar gestado na periferia que diz respeito ao conjunto das relações sociais como um todo. É da periferia, mas diz respeito aos que não são, ou melhor, é por ser da periferia que precisamente diz respeito ao conjunto da sociedade atual. É por ser o avesso da “sociedade de bem” que o funk é o lugar último de sua verdade, aquele resto de Real que não se presta aos mecanismos de identificação, retornando como fantasia perversa.
Parlamentares e representantes femininas pedem o fim da cultura do estupro – Foto: Lula Marques/ Agência PT
A função da crítica conservadora ao funk
O problema não está, portanto, na crítica ao funk, ou a esse modelo de funk que, por enquanto, é o hegemônico. A esquerda precisa assumir essa responsabilidade para si, caso contrário tais questões serão pautadas pela direita até ser tarde demais. Digamos que o problema com tais críticas não é em relação a seu conteúdo, e sim a sua função ideológica. É a maneira com que ela é feita que é problemática, pois seu objetivo final é circunscrever a cultura do estupro a uma zona restrita, de modo a livrar a cara do restante da sociedade, composta exclusivamente por “homens de bem”. A crítica conservadora ao funk quer fazer da cultura periférica a bola da vez, atirando-a aos cães, com o objetivo de empurrar a própria conivência com a cultura do estupro para debaixo do tapete.
No geral, o que se observa é o seguinte padrão argumentativo: um crime bárbaro acontece na favela (só acontece ali?). Na favela o som é o funk (só se escuta isso?). Logo, devemos criticar “eles”, o Outro, o funk, pois é ali que está a cultura do estupro (só ali?). Dessa maneira, todo o resto é blindado, sobretudo os estilos e gêneros mais “respeitáveis” (como MPB e samba “de raiz”), ou mais brancos (o rock dos anos 1980 e 1990, como Ultraje a Rigor e Raimundos). Ou seja, o que acontece é o exato oposto do movimento proposto por grande parte das mulheres, feministas ou não, que tem chamado a atenção para o fato de que esse caso extremo é tão somente a ponta do iceberg de nossa cultura do estupro, especializada em culpabilizar as vítimas e proteger o agressor.
A crítica conservadora ao funk, ao contrário, se esforça por focalizar o que aconteceu em um contexto específico (a culpa é do Outro, funkeiro e marginal), mobilizando um padrão narrativo largamente estabelecido, que seleciona os atores de sempre como elementos descartáveis (funkeiro, traficante, drogado, mulheres “sem dignidade” etc.), em um esforço brutal de “normalização” do absurdo, cujo principal objetivo é o de tirar o seu da reta, bloqueando a autocrítica.
Em outras palavras, o funk carioca não é culpado pela cultura do estupro. Mas o funk carioca também participa da cultura do estupro, assim como participam Vinicius de Moraes, Noel Rosa, Racionais MC’s, Beatles, AC/DC, Ultraje a Rigor,Michel Teló etc. A lista praticamente não tem fim. Levando em conta aquilo que as mulheres, sobretudo as feministas, vêm falando há tempos (lembremos da campanha #meuprimeiroassedio), o fundamental a se compreender é que o estupro é uma prática naturalizada em basicamente todos os ambientes, disseminada entre todas as classes e contextos laicos ou religiosos, como se a própria noção de “masculinidade” fosse fundada a partir dessa ignomínia. Está presente em uma favela carioca, no sertão paraibano, na faculdade de medicina da USP e no Congresso Nacional, quase como um mecanismo de constituição do Estado brasileiro – não por acaso fundado a partir de estupros sistemáticos do colonizador português, e depois do senhor de escravos. Ou colocamos toda essa cultura em questão, compreendendo as forças em embate, ou vamos selecionar as mesmas bolas da vez de sempre, perpetuando a barbárie.
Bem vindo ao deserto funkeiro do real
Boa parte do funk é, sim, expressão do horror e da barbárie que nos assola. Provavelmente a maior parte o seja. Entretanto, não se trata aqui do horror “deles”, do Outro marginal, periférico. Trata-se do nosso horror coletivo, o fracasso que substituiu um projeto já falido de país, e cujo diagnóstico mais preciso é produzido nas periferias já faz algum tempo, ao menos desde a emergência de um sujeito periférico (conceito de Tiaraju d’Andrea) em meados dos anos 1990. A passagem do rap ao funk, regressiva na medida em que se abandonam horizontes de emancipação (mas que, por outro lado, revela o avesso obsceno do rap, a necessidade de moralização do gozo que é um dos limites internos de seu projeto), está longe de ser um aspecto circunscrito ao funk. Pelo contrário, seu interesse profundo consiste na capacidade de materializar formalmente a nova dimensão da catástrofe social que nos atinge, e o estado de espírito a ela correspondente, que pode ser percebida em diversas outras instâncias do entretenimento brasileiro.
Podemos citar inúmeros outros exemplos dessa mudança de paradigma: a passagem do mecanismo de exploração da miséria via “caridade” em programas como o do Gugu Liberato e do Silvio Santos (“eu exploro os miseráveis porque me “compadeço” e quero lhes dar uma oportunidade, casa, dinheiro etc.”) para a exploração pura e simples sem justificativas que não a própria exibição da humilhação em programas como Pânico na Band e Big Brother; a passagem do padrão jornalístico liberal-conservador do Jornal Nacional para o modelo ultra-conservador do Brasil Urgente, apresentado porJosé Luiz Datena; a mudança do modelo de humor de representações baseadas em caricaturas que segue o padrão Chico Anysio ou do Viva o Gordo para o modelo de mera humilhação dos marginalizados, seguido por Danilo Gentilli, Rafinha Bastos, entre outros; um modelo de crítica cultural e política mais à esquerda, ou que pelo menos considera relevantes processos históricos e sociais para compreensão da sociedade, para um padrão conservador direitista de interpretação, representado por figuras como Lobão, Luiz Felipe Pondé, Diogo Mainardi, Reinaldo Azevedo e Olavo de Carvalho, com grande sucesso de público; a ascensão da agressividade da ética neopentecostal etc. Todas essas transformações culturais vistas em conjunto são profundamente reveladoras de um novo estado de espírito nacional, cujos resultados cada vez mais assustadores nos trazem diretamente ao conjunto de políticas mafiosas e regressivas que estamos acompanhando.
Portanto, não resta a menor dúvida de que a barbárie do funk é do mesmo tipo da nossa normalidade social obscena: num certo episódio do Pânico, comemorou-se o aniversário de Sabrina Sato, então uma de suas apresentadoras. De presente os demais participantes do programa atearam fogo na moça enquanto cantavam “parabéns pra você”. Em outra oportunidade, enterraram-na viva. É claro, o programa não é exceção, e poderia tranquilamente se tratar da prova do líder do Big Brother, ou de um quadro do Programa do Ratinho.
Não se trata, pois, de eximir o funk de toda e qualquer participação em nossa barbárie social, por meio de alguns argumentos que ajudam a legitimar a barbárie como manifestação cultural legitimamente periférica, como se a periferia fosse incapaz de produzir mais e melhor – inclusive funks melhores que são efetivamente produzidos. Manter o sentimento de horror diante de canções como “Sabotaram Meu Copo” ou “Novinha Não Mexe Comigo” talvez seja a verdadeira postura de identificação simbólica com a periferia. É o oposto da falsa identificação com os mais pobres, presente, por exemplo, na canção “Gente Humilde”, da dupla Chico Buarque e Vinicius de Moraes (com Garoto), na qual uma pobreza idealizada aparece enquanto portadora do belo, da esperança, da sabedoria etc. Obviamente tal fantasia representa muito mais uma imagem às avessas do distinto cavalheiro dotado de superioridade ética, o verdadeiro objeto de admiração, que deve amar os marginalizados idealizados como prova de sua própria superioridade. Desnecessário dizer o quanto que esse mecanismo ideológico de identificação imaginária é cara à esquerda.
Obviamente tal sentimento de horror é também em tudo oposto aquele que considera o funk um lixo desprezível a ser eliminado do planeta, para a conservação da pureza dos homens de bem. Como vimos, as duas posturas aparentemente opostas partem de um mesmo distanciamento “real” diante do qual idealiza-se o funk como mal encarnado ou expressão legítima e sem fissuras da periferia. O que deveria nos horrorizar no funk é aquilo que nele se revela do absurdo presente em nós, ou seja, a compreensão de que o funk é o lugar mesmo de nossa própria barbárie, a revelação daquilo que nos constitui, atualmente, enquanto sociedade. Nesse sentido, o que deve desaparecer e ser eliminado não é o funk, mas nós mesmos enquanto modelo de sociedade que fracassou. O funk talvez seja, hoje, o mais contundente modo de formalização da miséria do nosso presente – eis o potencial de revelação dessa forma de entretenimento a-crítico e, em grande parte, conservador.
Somente nesse sentido é que talvez possamos estabelecer certo paralelismo entre o funk carioca e a cultura do estupro. Não no sentido ideológico conservador, que procura identificar o estilo como pertencendo à cultura do Outro, marginal e periférico (a conhecida representação da periferia como lugar da violência e da produção de bandidos). Ao contrário, faz praticamente 30 anos que as periferias vêm produzindo o diagnóstico cultural mais complexo e apurado do modo como a sociedade brasileira se organiza. Por diversos fatores culturais e sociais que não poderão ser tratados aqui, as produções culturais periféricas (literatura, música, artes plásticas etc.) tornaram-se o campo mais interessante para compreensão daquilo que nos tornamos enquanto projeto de civilização, se é que esse termo continua a fazer sentido. O Brasil que um dia acreditou ser bossa nova (mas cuja imagem real logo provou estar muito mais próxima da bizarra alegoria tropicalista), e lutou desesperadamente contra o modelo radical de socialização proposto pelo rap, converteu-se na face mais perversa do funk carioca.
A mise-en-scène conservadora de “combate” ao estupro
Gostaria de finalizar com outro aspecto importante da mise-en-scène do “combate” conservador à cultura ao estupro. Aproveitando-se da comoção coletiva, algumas pessoas têm defendido o projeto de Jair Bolsonaro de castração química dos estupradores. O argumento recorrente é o que aponta para certa “hipocrisia” dos “esquerdistas defensores dos direitos humanos”, que afirmam ser contra o estupro, mas não apoiam o projeto.
Deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) – Foto: Gabriela Korossy/ Câmara dos Deputados
Todos nós sabemos o que acontece com os estupradores que vão presos, ou com aqueles que são pegos ainda na rua. Já existe pena de morte consolidada para esses sujeitos, da mesma forma como existe uma cultura do estupro que nos acompanha desde os tempos coloniais. Estamos, portanto, diante de um modelo contraditório. De um lado temos um convite cotidiano ao estupro, articulado a uma rede de proteção e solidariedade a estupradores e agressores de mulheres em geral, cujo resultado bizarro é, entre outras coisas, tornar possível um contexto de pesadelo onde praticamente todas as mulheres (recorde a campanha do #meuprimeiroassedio) já sofreram algum tipo de agressão violenta ao longo de suas vidas. Entretanto, caso um homem (homem pobre, é bom lembrar) seja condenado por estupro, é quase certo que seu destino será o estupro seguido de morte, na cadeia ou fora dela. É óbvio que não se trata aqui de uma maior consciência feminista por parte dos presos, e nem de uma maior solidariedade e humanização dos homens dentro da cadeia. Assim como é óbvio que Bolsonaro tampouco é contrário ao estupro – também não custa nada lembrar que o sujeito afirmou que não estupraria a deputada Maria do Rosário porque ela não merecia.
Não é nada fácil desatar esse nó, mas acho importante levar em consideração dois pontos. O primeiro aspecto a se considerar é que, diante de todas as dimensões perversas que formam nossa cultura do estupro, incluindo aí a rede de proteção aos estupradores, não podemos ser ingênuos a ponto de acreditar que os agressores condenados são violentamente punidos pelo estupro em si. A grande questão, portanto, é saber por que esses estupradores são punidos, em vez de cumprimentados, como em geral acontece com os homens que expõem suas diversas práticas abusivas entre os amigos (relembrando aqui os aplausos e risos paraAlexandre Frota ao contar como estuprou uma mãe de santo)?
Ao que me parece, eles não são punidos pela barbaridade do seu crime, uma vez que esse é completamente naturalizado em nossas relações cotidianas. Eles são condenados porque são pegos, e não porque estupraram. Eles são punidos porque “vacilaram”, expondo dessa forma a ampla rede de violência contra a mulher, aquele “segredinho” sujo que não é segredo para ninguém (dado o seu grau de naturalização no campo da cultura e nas práticas cotidianas). A punição violenta não é motivada pela identificação com a vítima, e sim pela identificação com outros homens que foram expostos por aqueles que “vacilaram”. Como aquele chefe de facção que pune um dos membros do grupo não pelo excesso de violência contra os inocentes, e sim por ter chamado muita atenção sobre a gangue, prejudicando momentaneamente o andamento dos “negócios”.
Um segundo aspecto importante nesses casos é o caráter simbólico dessas punições. “Castração”, “estupro corretivo”, “amarrar no poste com o próprio pau na boca”, em todos esses casos, a punição serve como forma de “retirar” a masculinidade do sujeito. Castrá-lo. Em outras palavras, transformá-lo em “mulherzinha”. É por isso que não basta um tiro na cabeça, ou coisa assim. O ritual serve para destituir simbolicamente o sujeito de sua masculinidade. A partir dessa nova condição passiva/feminina, aquele que até então detinha os privilégios do agressor se converte naquele que pode ser violentado pelos que continuam sendo machos e que, portanto, têm o direito natural à agressão. Dessa forma, reforça-se uma vez mais os lugares naturalizados de agressores (ativos/masculinos) e vítimas (passivos/femininos).
O desejo masculino pela castração química ou pelo estupro corretivo do estuprador não é movido pela solidariedade com as mulheres. É, antes, a perpetuação pelo avesso da mesma lógica de agressão sistêmica. Um gesto de violência performativa que transforma em espetáculo a condenação de alguns casos como se fossem exceções. Dessa forma,protege-se o restante da manada.
Assim como no caso da escolha do funk como portador exclusivo da cultura do estupro, também nesse caso o objetivo principal é livrar a própria cara. A violência está no Outro. Contudo, as mulheres vêm nos alertando não é de hoje que não estamos diante de alguns poucos indivíduos que são doentes monstruosos. Nós, os normais, é que estamos “doentes”. E não é difícil perceber isso.
* O autor, Acauam Oliveira, nasceu no Rio de Janeiro, foi criado no interior de São Paulo, se formou na capital paulista e atualmente vive na Paraíba. É, em suas próprias palavras, um preto de 34 anos que defendeu o doutorado sobre música popular na faculdade de Letras da USP, pagodeiro, são-paulino e sofredor. É um dos editores do site Chic Pop.
Acauam Oliveir, nasceu no Rio de Janeiro, foi criado no interior de São Paulo, se formou na capital paulista e vive na Paraíba. É, em suas próprias palavras, um preto de 34 anos que defendeu o doutorado sobre música popular na faculdade de Letras da USP, pagodeiro, são-paulino e sofredor.