Sobre preconceito e intolerância religiosa

Comunidades de terreiro se mobilizam em todo o país em busca de combater o preconceito e a perseguição. Saiba mais sobre a luta pela preservação da cultura afro-brasileira

Foto: Gabriel Brito/Correio da Cidadania

 

Por Vanessa Cancian, para o Brasil de todo mundo, no NegroBelchior

“A sua riqueza vem lá do passado, de lá do congado, eu tenho certeza”, a música do baiano Edil Pacheco, eternizada na voz de Clara Nunes, celebra a riqueza da cultura africana que foi construída no Brasil. Os cantos, os toques, a comida, danças e influências da negritude que pairam nessa terra guardam uma riqueza cultural imensurável. Historicamente, a construção da nossa identidade fez com que o Brasil se tornasse um país negro em cor, forma e conteúdo. Mesmo que essa negritude tenha sido renegada ao longo dos anos, a resistência fez com que nos tornássemos o maior país negro fora do continente africano.

Anos de escravidão, lutas por liberdade e ainda hoje a população negra sofre com o preconceito e a falta de respeito por suas tradições. Recentemente, o Terreiro Casa de Oxumarê, um dos mais antigos e tradicionais do Brasil, organizou uma mobilização nacional em busca de defender e clamar por respeito para com os cultos religiosos afro-brasileiros. A destruição de terreiros, ofensas, invasões e manifestação de ódio e intolerância mostram o retrocesso de parte da sociedade brasileira que teima em contestar a diversidade cultural de um país formado da intensa mistura de etnias.

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“Começamos com essa mobilização sobretudo após o surgimento do exército chamado Gladiadores do Altar, explica Akinyàlé Elias Pontes, coordenador da Rede Afro-brasileira Sociocultural do Estado de São Paulo e Gestor do Grupo de Trabalho de intolerância religiosa no Ministério da Justiça do DF. Segundo ele, adeptos da Igreja Universal vêm atacando os centros de matriz africanas com a justificativa de que são lugares onde se encontra o “demônio”. Casas de culto tanto de Candomblé quanto da Umbanda em todo o Brasil assinaram um manifesto que será encaminhado para a ONU como forma de campanha por mais respeito e igualdade.

A luta dos povos de terreiro é a mesma em todos os estados do Brasil. Em São Paulo, foi criada a iniciativa “As Águas de São Paulo”, com a finalidade de expandir a importância de denunciar atos de preconceito com os povos de matriz africana e promover a liberdade religiosa e preservação dessas tradições. “Precisamos quebrar esses tabus colocados por outras religiões que, ao invés de somar desagregam e geram uma competição que não acrescenta em nada”, diz o Babalorisá Ofanire, presidente do “As Águas de São Paulo”, um dos maiores movimentos brasileiros contra discriminação e intolerância religiosa.

A beleza negra escondida pela mídia

“Toda riqueza cultural das tradições afro-brasileiras não é mostrada porque não temos espaço na mídia para exibir o que os povos de terreiro têm de melhor”, pontua Pontes. O militante e iniciado no Candomblé ressalta também o infeliz hábito dos meios de comunicação brasileiros de reproduzir imagens ruins que não condizem com o que de fato acontece dentro dos terreiros. Mais do que isso, nas poucas vezes em que o debate relacionado ao universo cultural afro-brasileiro chega à grande mídia, o que se vê são produções carregadas de estereótipos, e o povo negro sendo alvo de piadas e desrespeito.

Por esse motivo, a luta das comunidades tradicionais e como de fato acontecem os rituais, a representação do sagrado e toda riqueza cultural ficam escondidos por uma sociedade ocidental de predominância cristã. “Somos uma cultura milenar viva e que resiste até os dias de hoje, oprimida e se escondendo daqueles que querem acabar com tudo isso”, lamenta Pontes.  

Conhecer para respeitar e vice-versa

O antropólogo Darcy Ribeiro afirma em sua obra O Povo Brasileiro que a população negra foi a força substancial da construção do Brasil. Segundo ele, a presença dos povos africanos fez quase tudo que aqui se fez e construiu o que hoje conhecemos como nosso país. Atitudes noticiadas recentemente mostram a falta de conhecimento da população sobre sua própria origem e, mais do que isso, o desrespeito por culturas diferentes. “Eu acredito que para a sociedade respeitar as diferenças é preciso dar a oportunidade de conhecer julgamentos. Ignorante é aquele que não se permite conhecer”, destaca Cerqueira.

“O que aconteceu essa semana foi um movimento histórico digno de ser noticiado pelos mais importantes canais de comunicação do Brasil. Pela primeira vez as comunidades de terreiros, de todos os estados do país, se mobilizaram e denunciaram os ataques e abusos motivados pela intolerância religiosa, no Ministério Público. A falta de atenção da grande mídia para nossa causa demonstra o quão fundamentalista e preconceituosa é a nossa comunicação, que enxerga os terreiros somente como exoterismo para previsões e matérias tendenciosas, mas nunca noticiam as importantes lutas que protagonizamos pela tão sonhada liberdade de culto e expressão da fé”, diz Roger Cipó, fotógrafo e candomblecista.

Terreiro Casa de Oxumarê, um dos mais antigos e tradicionais do Brasil, organizou uma mobilização nacional em busca de defender e clamar por respeito para com os cultos religiosos afro-brasileiros. A destruição de terreiros, ofensas, invasões e manifestação de ódio e intolerância mostram o retrocesso de parte da sociedade brasileira que teima em contestar a diversidade cultural de um país formado da intensa mistura de etnias.

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“Para mudar essa realidade, temos que combater a raiz da intolerância, que pra mim é o racismo. Historicamente, a sociedade negou a cultura, religião e identidade do negro para negar a sua humanidade e justificar até mesmo a escravidão”, alerta Marina Duarte de Souza, jornalista e produtora cultural. Segundo ela, as religiões de matriz africana foram demonizadas pela sociedade cristã branca e patriarcal e até hoje as pessoas reproduzem esse discurso de macumba, feitiçaria e magia negra, o que explicita ainda mais o racismo.

A jornalista se iniciou recentemente no Candomblé e sente na pele as manifestações de preconceito quando as pessoas se deparam com seus trajes brancos. “Sinto que as vezes chega a ser uma fobia. Há pessoas que chegam com papos como ‘Jesus te ama menina’ e respondo: ‘não foi ele que pregou o respeito ao próximo?’”, completa. “Em longo prazo isso se combate com educação e informação, daí a importância de leis como a 10.639, do Estatuto da Igualdade Racial e do Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana”, ressalta Souza.

 

 

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