Sobrevivi a R. Kelly e a violência contra mulheres negras

Ser mulher negra é enfrentar a luta cotidiana, tentar sobreviver e seguir mais adiante.  A dor não vai passar, mas a mulher negra se levanta generosamente para lutar de forma que outras não experimentem o que ela viveu.

− Jurema Werneck

Por Ricardo Corrêa, enviado para o Portal Geledés 

R. Kelly  (Imagem: Lifetime/Divulgação)

Está disponível no catálogo da Netflix a série documental Sobrevivi a R. Kelly (2019) abordando histórias de mulheres negras que acusam o rapper afro-americano R. Kelly, atualmente preso¹, de crimes de abuso sexual e psicológico. A série é dividida em seis episódios, e confesso que durante a exibição fui acometido por vários sentimentos. No primeiro momento, decepção, já que na adolescência as músicas do artista embalaram muitos bailes de black music que eu freqüentava. Depois, revolta e indignação, ao refletir sobre as condições das mulheres negras que são vítimas de inúmeros casos de violências, sendo que se repetem sob a sombra da impunidade e invisibilidade. Até recordei da infância, quando presenciava minha mãe, mulher negra e periférica, sofrendo nas mãos de seu ex-companheiro.

Todos sabem que muitas mulheres não denunciam, ou não abrem mão da relação abusiva, devido a inúmeras razões: natureza psicológica, embaraços familiares, ausência de proteção do Estado, imagem perante a sociedade, condições econômicas etc. Essas dimensões facilitam com que o predador continue a violentá-las, mas podem existir outras razões. A manutenção do sofrimento surge de contextos diversos, e, como homem negro, dotado de um olhar externo, escapa-me maior profundidade na observação da vivência das mulheres negras. Nesse sentido, acrescento a crítica do escritor Benjamim Barber, citada pela intelectual afro-americana bell hooks (2015) 

   O sofrimento não é necessariamente uma experiência fixa e universal que possa ser medida com uma régua única: está relacionado a situações, necessidades e aspirações. Mas deve haver alguns parâmetros históricos e políticos para o uso do termo, para que possam ser estabelecidas prioridades políticas e se possa dar mais atenção a diferentes formas e graus de sofrimento.

 

Com relatos comoventes e dolorosos, no documentário, as consideradas “sobreviventes” denunciam R. Kelly  por agressões físicas, abusos sexuais e torturas psicológicas. Até as composições do artista dialogavam com essa realidade sórdida, numa aparente certeza de impunidade. Algumas dessas sobreviventes começaram a ter relações com R. Kelly quando eram menores de idade e as denúncias contra o artista surgem há duas décadas.

É inacreditável que diante de tantas evidências, R. Kelly escapava de qualquer tipo de punição e continuava fazendo sucesso entre milhares de pessoas. Até compreendo a existência de componentes na subjetividade que dissociam a obra do artista, o capitalismo intrínseco ao mercado fonográfico e a classe artística que pretendia potencializar a fama junto à imagem do artista. Mas, nada disso pode justificar o silêncio diante de graves acusações. Kimberlé Crenshaw, acadêmica e feminista negra interseccional, comentou que “a indústria da música agora está sendo chamada para corrigir um erro interseccional − para reverter seu aparente desrespeito às mulheres e meninas negras.” Por outro lado, acredito que a morosidade da justiça para julgá-lo decorre da raça das mulheres vitimadas, suponho que se fossem mulheres brancas o desenrolar dos processos seria diferente e, possivelmente, o artista não teria ampliado o rol de vítimas.

Sobrevivi a R. Kelly acende um alerta que chacoalha a humanidade de cada um que assiste, principalmente, nós, homens negros, questionando até quando alguns do nosso grupo continuará fazendo parte na violência contra as  mulheres negras; ademais, sofremos racismo igualmente, mas a condição de gênero, ao cruzar com a raça, coloca essas mulheres em patamar de sujeição. Combater os predadores é um dever de todos. O silêncio é cumplicidade. E a luta será necessária, em todos os aspectos sociais, enquanto o discurso de Malcolm X (1962) continuar sendo a leitura exata da realidade “A mulher mais desrespeitada na América é a mulher negra. A pessoa mais desprotegida na América é a mulher negra. A pessoa mais negligenciada na América é a mulher negra”.

 Julgamento do cantor R. Kelly  por abuso sexual é adiado para julho

¹Disponível em: <https://f5.folha.uol.com.br/celebridades/2020/02/julgamento-do-cantor-r-kelly-por-abuso-sexual-e-adiado-para-julho.shtml>. Acesso em: 11 abr.2020


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HOOKS, Bell. Mulheres negras: moldando a teoria feminista. In Rev. Bras. Ciênc. Polít. 2015, n.16 pp. 193-210. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci _arttext&pid=S0103-33522015000200193>. Acesso em: 10 abr. 2020
NETFLIX. Sobrevivi a R. Kelly. Disponível em: <https://www.netflix.com/br/title/81069393>. Acesso em: 12 abr. 2020
WERNECK, Jurema. O racismo nosso de cada dia e a situação da mulher negra brasileira. Disponível em: <https://www.huffpostbrasil.com/jurema-werneck/o-racismo-nosso-de-cada-dia-e-a-situacao-da-mulher-negra- brasile_a_21905772/?utm _hp_ref=br-homepage&guccounter=1>.  Acesso em: 12 abr. 2020

** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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