Sociedade civil mobilizada é exemplo de cidadania contra a Covid-19

Ao nascer, seres frágeis que somos, nosso primeiro impulso é respirar. Num grito, puxamos o ar para os pulmões. Um dos primeiros sinais de gravidade da Covid-19 é a falta de ar: é o instinto de respirar que está sob ameaça agora. Atualmente no Brasil, mais de mil pessoas morrem por dia, muitas delas por não conseguirem encher de ar os pulmões. Não bastasse a pandemia, cresce, nas favelas e periferias de vários estados do país o assassinato de pessoas – e de crianças!- em operações policiais. Mizael, de 13 anos, foi morto dormindo, em uma comunidade do Ceará. João Pedro, de 14 anos, foi morto brincando, vítima de um dos 70 tiros disparados pela polícia, no Rio de Janeiro.

A crise na saúde nos revelou descaso e negligência das autoridades nas diferentes esferas de governo. Como o veto presidencial recente da lei 1142/2020 aprovada pelo Congresso para garantir água potável, comida e assistência em saúde para indígenas e quilombolas. É, mais uma vez, a “velha” desigualdade brasileira, exposta sem constrangimento, atrelada a violações de direitos humanos e sem a devida responsabilização de seus autores. Não à toa que, para alguns, o termo cidadania ganhou conotações pejorativas. Assistimos a naturalização do que de pior nossa sociedade produziu e cultivou: a exclusão baseada no racismo, nas posições de classe, na identidade de gênero, na idade, na condição física e mental.

Mas do lado de cá, na parte da sociedade onde cidadania é esperança e imperativo, a luta é cotidiana. Grupos inteiros recusam a apatia e buscam garantir o oxigênio necessário para a sobrevivência pessoal da família e da comunidade. No Complexo do Alemão, o Gabinete de Crise formado por organizações de moradores já distribuiu 11.353 cestas básicas e kits de higiene, que beneficiaram 45.412 pessoas, até 08 de julho. A iniciativa não esperou a ação do Estado que nunca chegou. Criola, organização de mulheres negras atuantes há 28 anos, tem trabalhado em todo o Estado do Rio de Janeiro em parceria com organizações locais. Elas levam às mulheres das favelas, periferias e quilombos, os recursos mínimos necessários para que façam valer seu direito à renda emergencial, entregam alimentos, materiais de higiene e, também, reconhecimento e esperança.

Nós da Anistia Internacional Brasil e 36 organizações lançamos a campanha Nossas Vidas Importam, e afirmamos que é sob a lente da cidadania que devemos ser tratados e acolhidos. Sobretudo aquelas e aqueles vulnerabilizados pela omissão das autoridades: os moradores de favelas e periferias, negros e negras, quilombolas e indígenas, mulheres, pessoas em situação de rua, pessoas em privação de liberdade, adolescentes e jovens do sistema socioeducativo, mulheres trans, crianças e adolescentes, trabalhadora e trabalhadores da saúde, defensoras e defensores da ciência, dos direitos humanos e da saúde coletiva. Exercemos nossa cidadania pressionando as autoridades brasileiras por nossos direitos.

É possível ser um cidadão consciente, empático, agente transformador e defensor dos direitos humanos. A pandemia nos trouxe muitos vexames e outros tantos 7×1, mas só coletivamente conseguimos virar esse jogo.

 

*Publicado originalmente em 12/07/2020 no O GLOBO.

+ sobre o tema

Mais de 6 mil crianças são resgatadas do trabalho infantil em 2 anos

Entre 2023 e abril de 2025, 6.372 crianças e...

Crescimento de umbanda e candomblé reflete combate à intolerância

O número de adeptos de religiões afro-brasileiras, como umbanda...

Caso Miguel completa 5 anos: mãe critica lentidão da Justiça

A próxima terça-feira (dia 10) será mais um dia...

Transição energética não pode repetir injustiças históricas

Cá entre nós, no Brasil, o modelo de desenvolvimento...

para lembrar

Texto exemplar da Juíza Federal Raquel Domingues do Amaral

"Sabem do que são feitos os direitos, meus jovens? no...

As 10 mentiras mais contadas sobre os indígenas

As afirmações listadas abaixo foram extraídas da vida real....

Frequência afetiva, qual é a sua?

Dias desses mandei um inbox parabenizando uma amiga querida...

Política: O que é ser esquerda, direita, liberal e conservador?

Nas eleições presidenciais e estaduais de 2014, o Brasil...

Meninas mães passam de 14 mil e só 1,1% tiveram acesso a aborto legal

Quase 14 mil meninas de 10 a 14 anos de idade tiveram filhos no Brasil em 2023, e apenas 154 tiveram acesso ao aborto...

5 fatos que marcaram a atuação política de Pepe Mujica na presidência do Uruguai 

Pepe Mujica viveu até os 89 anos de idade e marcou a política latino-americana com suas ações em prol de causas populares e em...

INSS notificará beneficiários vítimas de descontos a partir de terça

A partir desta terça-feira (13), os aposentados e pensionistas que sofreram descontos em seus benefícios por meio de associações irão receber uma notificação do Instituto Nacional do...