Solano Trindade

O Vento forte da África

Nascido em 24 de julho de 1908 em Recife-PE foi poeta, cineasta, pintor, homem de teatro e um dos maiores animadores culturais brasileiros do seu tempo, o pernambucano Francisco Solano Trindade foi, para vários críticos, o criador da poesia “assumidamente negra” no Brasil.

Curta aqui sua filha, a artista plástica Raquel Trindade declamando o clássico Tem gente com fome

TEM GENTE COM FOME

Trem sujo da Leopoldina

correndo correndo

parece dizer

tem gente com fome

tem gente com fome

tem gente com fome

Piiiiii

Estação de Caxias

de novo a dizer

de novo a correr

tem gente com fome

tem gente com fome

tem gente com fome

Vigário Geral

Lucas

Cordovil

Brás de Pina

Penha Circular

Estação da Penha

Olaria

Ramos

Bom Sucesso

Carlos Chagas

Triagem, Mauá

trem sujo da Leopoldina

correndo correndo

parece dizer

tem gente com fome

tem gente com fome

tem gente com fome

Tantas caras tristes

querendo chegar

em algum destino

em algum lugar

Trem sujo da Leopoldina

correndo correndo

parece dizer

tem gente com fome

tem gente com fome

tem gente com fome

Só nas estações

quando vai parando

lentamente começa a dizer

se tem gente com fome

dá de comer

se tem gente com fome

dá de comer

se tem gente com fome

dá de comer

Mas o freio de ar

todo autoritário

manda o trem calar

Psiuuuuuuuuuuu

Premiado no exterior, elogiado por celebridades como Carlos Drummond de Andrade, Darcy Ribeiro, Sérgio Milliet e tantos outros, o negro (e pobre) escritor recifense está hoje completamente esquecido, apesar de tudo o que fez pela cultura e pelas artes do País.

Para se ter uma idéia da importância do poeta, que era filho de um humilde sapateiro do bairro de São José, basta uma rápida reconstituição de sua biografia.

Depois que deixou o Recife e fixou residência no Rio de Janeiro, Solano Trindade foi o idealizador do I Congresso Afro-Brasileiro e, anos mais tarde (1945), criou, com Abadias do Nascimento, o Teatro Experimental do Negro.

Depois (1950), concretizou um dos seus grandes sonhos, fundando, com apoio do sociólogo Edson Carneiro, o Teatro Popular Brasileiro (TPB). Em 1955 criou o Brasiliana, grupo de dança brasileira que bateu recorde de apresentações no exterior.

No teatro, foi Solano Trindade quem primeiro encenou (1956) a peça “Orfeu”, de Vinícuis de Morais, depois transformada em filme pelo francês Marcel Cammus.

Mas a biografia de Solano Trindade não pára por aí. Em São Paulo, onde o TPB empolgou platéias no Teatro Municipal, foi ele quem transformou a cidade de Embu num centro cultural onde dezenas de artistas passaram a viver da arte.

No exterior (Praga), realizou o documentário “Brasil Dança”. Como ator, trabalhou nos filmes “Agulha no Palheiro”, “Mistérios da Ilha de Vênus” e “Santo Milagroso”.

E mais: foi co-produtor do filme “Magia Verde”, premiado em Cannes. Na literatura, Solano estreou em 1944, com “Poemas de uma Vida Simples” e publicou ainda outros dois livros: “Seis Tempos de Poesia” (1958) e “Cantares ao Meu Povo” (1961).

Enquanto atuou na vida cultural brasileira, Solano Trindade (“esse genial poeta”, na classificação de Carlos Drummond de Andrade) recebeu os maiores elogios da crítica.

Seu livro de estréia, por exemplo, foi classificado por Otto Maria Carpeaux como “uma pequena preciosidade”. Tinham opinião semelhante sobre a sua poesia, nomes de peso como Afonso Schmidt, Roger Bastides, Fernando Góes, Arthur Ramos e Nestor de Holanda. Já o trabalho do Teatro Experimental do Negro (TEN) foi, segundo Darcy Ribeiro, “um núcleo ativo de conscientização dos negros, para assumirem orgulhosamente sua identidade e lutar contra a discriminação”.

Aliás, todo o trabalho de Solano Trindade (quer no teatro, dança, cinema ou literatura) tinha como características marcantes o resgate da arte popular e, sobretudo, a luta em prol da independência cultural do negro no Brasil.

A ponto de Sérgio Milliet chegar a escrever que “poucos fizeram tanto quanto ele pelo ideal de valorização do negro em nossa terra”. Estaria aí uma razão para o seu esquecimento? Fica a pergunta.

Negros

Negros que escravizam

e vendem negros na África

não são meus irmãos

Negros senhores na América

a serviço do capital

não são meus irmãos

Negros opressores

em qualquer parte do mundo

não são meus irmãos

Só os negros oprimidos

escravizados

em luta por liberdade

são meus irmãos

Para estes tenho um poema

grande como o Nilo.

O certo é que, durante a estréia no Rio, em maio de 1945, o TEN sofreu violentos ataques dos conservadores. Em editorial, o jornal O Globo chegou a afirmar que se tratava de “um grupo palmarista tentando criar um problema artificial no País”.

Enquanto viveu no eixo Rio-São Paulo, ao mesmo tempo em que sua obra ganhava fama entre a crítica nacional e repercussões no exterior, nunca deixou de realizar oficinas para operários, estudantes e desempregados.

Em 1944, por conta do poema Tem Gente com Fome, foi preso e teve o livro “Poemas de uma Vida Simples” apreendido. Em 1964, um dos seus quatro filhos (Francisco) morreu numa prisão da ditadura militar.

Morreu em 20/02/ 1974 num hospital no Rio de Janeiro.

Um das poucas tentativas de trazer de volta o nome de Solano Trindade para o grande público ocorreu entre 1975, quando o poema Tem Gente com Fome iria integrar o disco dos Secos & Molhados.

Mas, como explicou João Ricardo (que musicou o poema), problemas com a censura impediram a gravação. Só em 1979, Ney Matogrosso gravaria a canção Tem Gente com Fome, no seu LP “Seu Tipo”.

Além disso, em 1976 a escola-de-samba Vai-Vai, do Bexiga, São Paulo, desfilou no carnaval com o enredo em homenagem ao poeta.

Samba enredo da Vai-Vai de autoria de outro Gigante Negro – Geraldo Filme e interpretado por Bernadete e o conjunto do T Kaçula.

Opiniões sobre a obra de Solano Trindade:

Carlos Drumond de Andrade, em carta a Solano, 02/12/1944: “A leitura dos seus versos deu-me confiança no poeta que é capaz de escrever Poema do Homem e O Canto dos Palmares. Há nesses versos uma força natural e uma voz individual, rica e ardente, que se confunde com a voz coletiva.”

Roger Bastides, sociólogo e escritor francês, viveu no Brasil entre 1938-1954, autor de “A Poesia Afro-Brasileira”, tradutor de “Casa Grande & Senzala” para o francês: “O senhor faz dos seus versos uma arma, um toque de clarim, que desperta as energias, levanta os corações, combate por um mundo melhor.”

Darcy Ribeiro, no livro “Aos Trancos e Barrancos – Como o Brasil deu no que deu”, 1985: “O Teatro Experimental do Negro funcionou como um núcleo ativo de conscientização dos negros, para assumirem orgulhosamente sua identidade e lutar contra a discriminação”.

Abdias do Nascimento, escritor e político negro: “Entre os raros poetas negros que conheço neste Brasil mestiço, Solano Trindade é o que melhor me satisfaz. Ele é negro, sente como negro, e como tal cantou as dores, as alegrias e as aspirações literárias do afro-brasileiro.”

Otto Maria Carpeaux, escritor e crítico literário: “Uma estante num armário meu está reservada para os poetas brasileiros. Não são muitos que guardo, e os que não pretendo reler estão atrás. Às vezes, conforme as mudanças violentas do meu gosto, mudam de lugar, saindo para a 1a. Há alguns que já mudaram várias vezes de lugar. O seu volume, que considero uma pequena preciosidade, entrou hoje na 1a fila; espero que continuará lá até, um dia, um leiloeiro apregoar as coisas que deixei ao descer para a cova e gritar: ‘Volume de Solano Trindade, raro, valorizado por dedicatória do poeta ao defunto!'”

Nestor de Holanda, escritor, compositor e crítico, autor de “Itinerário da Poesia carioca”, sobre o livro Poemas de uma Vida Simples: “A cor preta no Brasil está tendo agora, com o surgimento de Solano, o seu primeiro poeta nato, o seu primeiro cantor negro. Solano Trindade é o maior preto que a poesia negra possui. E nenhum negro interpretou tão bem e com tanto sentimento, até hoje, entre nós, o verdadeiro sentido da poesia preta.”

Romão da Silva, escritor e jornalista: “Quem quiser pense ao contrário, mas na minha opinião, Solano Trindade, este grande poeta negro que Pernambuco deu ao Brasil, é o nosso Langston Hughes.”

José Louzeiro, escritor: “Convivi de perto com Solano Trindade. Era um intelectual de intensa participação e tinha consciência de que poucos países desenvolvem uma política racista tão bem camuflada quanto o nosso.”

Lauro Armando, poeta e escritor: “Grande poeta, grande lutador, grande negro, grande exemplo, enfrentando as barreiras da discriminação racial, com a mesma coragem com que Castro Alves, Luis Gama, Patrocínio e Joaquim Nabuco haviam denunciado as da escravatura.”

Sérgio Milliet, poeta, ensaísta e um dos mais importantes críticos literários brasileiros, 1961: “Organizando bailados, editando revistas, promovendo espetáculos e conferências, incansável em sua atividade, poucos fizeram tanto quanto ele pelo ideal da valorização do negro. O livro Cantares ao meu Povo é a tomada de consciência disso a que Sartre chamou de negritude.”

Álvaro Alves de Faria: “Solano, na verdade, não tinha muitas preocupações com as escolas literárias da poesia brasileira. Para ele, a poesia era realmente inspiração, aquele estado de espírito aberto ou à beleza ou à angústia. E esse estado Solano usou para falar -pelo menos no início da sua obra poética- de sua cor, na luta do negro quase sempre marginalizado.”

Henrique L. Alves: “O criador do Teatro Popular Brasileiro, poeta, folclorista, cineasta figura humana pertencente ao circuito coletivo, está completamente olvidado. A memória nacional adormecida esqueceu o dia 24 de julho, oportunidade em que Solano cruzou o paralelo 70. Figura andante, pisou caminhos e semeou o amor ao folclore na tentativa de preservar nossas tradições através do teatro.” (folheto publicado através do Ministério da Educação em 1978, quando Solano Trindade completaria 70 anos)

Edwaldo Cafezeiro: “Ao contrário de Cruz e Sousa, que sublimou no branco as atormentações de sua vida, Solano repousa tudo no seu canto e o seu canto na resistência e no brilho do ébano, do preto.”

Cronologia:

1908 – A 24 de julho, nasce Francisco Solano Trindade, numa casa da Rua Nogueira, bairro de São José, Recife. Filho do sapateiro e véio de pastoril Manoel Abílio (o “Menino de Ouro”) e da doméstica Merenciana Quituteira, ambos pretos e pobres.

– Estuda até o equivalente ao Segundo Grau e freqüenta, durante um ano, o curso de desenho no Liceu de Artes e Ofícios.

1920 – No final da década, torna-se protestante, sendo diácono presbiteriano. – Publica seus primeiros poemas na revista do Colégio XV de Novembro, de

Garanhuns, e em jornais do Recife. Só depois dessa fase começaria a nascer o poesia negra.

1934 – Organiza no Recife o I Congresso Afro-Brasileiro e o II em Salvador.

1936 – Funda no Recife, com o pintor primitivista Barros Mulato e o escritor Vicente Lima, a Frente Negra Pernambucana e o Centro Cultural Afro-Brasileiro.

– Publica o livro “Poemas Negros”.

– Muda-se para Belo Horizonte, onde permanece pouco tempo, indo em seguida para o Rio Grande do Sul.

1940 – Em Pelotas, funda um Grupo de Arte Popular. Depois, retorna ao Recife.

1942 – Com um grupo de artistas, expõe sua pintura no Rio de Janeiro, onde fixou residência.

1944 – Publica o livro “Poemas de uma Vida Simples”.

– Participa do II Congresso Brasileiro de Escritores.

– Funda o Comitê Democrático Afro-Brasileiro.

– Funda, com Haroldo Costa, o Teatro Folclórico Brasileiro.

– Lança, no auditório da UNE, com Paulo Ramalho, a Orquestra Afro-Brasileira, do maestro Abigail Moura

– Em dezembro, por conta do poema “Tem Gente com Fome”, é preso e tem o seu livro apreendido.

1945 – Funda, no Rio de Janeiro, com Abdias do Nascimento, o Teatro Experimental do Negro cuja estréia ocorreu em maio daquele ano, com a peça “O Imperador Jones”.

1950 – Funda, com o sociólogo Edson Carneiro, o Teatro Popular Brasileiro cujo elenco era formado por operários, domésticas, comerciários e estudantes e apresentava espetáculos de batuques, congadas, caboclinhos, capoeira, coco e outras manifestações populares. Com o grupo, viaja a vários países da Europa.

1955 – É responsável pela primeira montagem da peça “Orfeu da Conceição”, de Vinícius de Moraes, que em 1956 também seria dirigida por Léo Jusi e em 1959 seria adaptada para o cinema, sob o título “Orfeu Negro”, pelo cineasta francês Marcel Camus.

– Cria o Brasiliana, grupo de dança brasileira que bateu recorde de apresentações no exterior.

1958 – Lança o livro “Seis Tempos de Poesia”.

1961 – Lança o livro “Cantares ao Meu Povo” que teria uma segunda edição em 1981, pela Editora Brasiliense.

– Transforma a cidade de Embu, São Paulo, num grande centro cultural onde o Teatro Popular Brasileiro viveu a sua melhor fase, com suas apresentações atraindo multidões. Depois que Embu passou a ser atração mais turístico-comercial que artística, deixa a cidade e vai viver na capital paulista.

1969 – Adoece e passa por vários hospitais e um asilo, até morrer, numa clínica em Santa Tereza, Rio de Janeiro, a 20 de fevereiro de 1974.

Solano Trindade deixou uma peça teatral não publicada, “Malungo”, em co-autoria com Miécio Tati, sobre os Quilombos. Teve quatro filhos: Raquel, Godiva, Liberto e Francisco Solano, este assassinado em 1964, num presídio carioca da ditadura militar.

1976 – A Escola-de-samba Vai-Vai, do Bexiga, São Paulo, desfila no carnaval com o enredo em homenagem a Solano Trindade.

1988 – O Centro Cultural Solano Trindade, fundado em 1975, no bairro de Realengo, Rio de Janeiro, publica o livro “Tem Gente com Fome e Outros Poemas”

Fonte: Portal Arruda

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