“A solidariedade antirracista é o maior medo da supremacia branca”

Gabriela Shimabuko, militante do movimento asiático, fala sobre como o mito da minoria modelo colabora para o racismo anti-negro

Por  Ingrid Matuoka, da Carta Capital 

‘Perigo Amarelo apoia o poder negro’, diz cartaz

Dentre os diversos mitos que existem no ocidente, um deles envolve os japoneses e nipo-brasileiros, a chamada “minoria modelo”, que migrou principalmente para o Brasil e para os Estados Unidos em navios, geralmente fugindo da guerra, e que prosperou.

A história não passaria de uma generalização superficial e aparentemente inocente, não fosse um porém: ela é usada para reforçar o racismo contra negros.

Gabriela Shimabuko, militante do movimento asiático e autora do texto “Anti-negritude é global: a participação asiática no racismo anti-negro”, explica a questão e discute formas de combater esse meio de opressão.

CartaCapital: O que é uma “minoria modelo”? Quem faz parte dela?

Gabriela Shimabuko: A minoria modelo, no ocidente, é um mito dialético do Perigo Amarelo, que são os asiáticos principalmente do extremo oriente vistos como ameaça econômica por terem muita mão de obra e recursos. A minoria modelo não existe sem o mito do Perigo Amarelo, porque ela surge quando o extremo oriente é uma ameaça direta às civilizações do ocidente.

Trata-se de um estereótipo, mas que não é real, materialmente não existe. Seria o “japonês da USP”, alguém bom no âmbito acadêmico, econômico, bem educado.

Fazem parte dela principalmente japoneses e chineses. Como a imigração coreana está aumentando no Brasil, eles também entram. Aqui no país não tem uma migração indiana ou tailandesa intensa, então muitas vezes não incluímos o sudeste asiático.

CC: Essas pessoas se sentem pressionadas a seguir este padrão? Isso é prejudicial a elas?

GS: Nos Estados Unidos já existem estudos sobre isso. O mito da minoria modelo afeta a autoestima de crianças asiáticas de uma forma negativa. Quando somos bons, é o esperado. Quando somos ruins, é o que marca, dizem: “você é japonesa mas não sabe matemática”.

Isso também faz com que professores sejam mais tendenciosos no tratamento dos alunos. A criança que tem dificuldade já sente vergonha porque perante a família ela é uma decepção, e se sente excluída da ajuda dos professores porque o mínimo que se espera é que ela seja excelente.

CC: Ao mesmo tempo em que tem pontos negativos, fazer parte de uma minoria modelo pode ser um privilégio?

GS: No contexto brasileiro, o que a gente enfrenta são micro agressões, que individualmente são prejudiciais, mas que estruturalmente podem nos beneficiar.

Por mais que sejamos racializados, não somos perseguidos pela polícia, não precisamos ficar com medo de alguém preferir uma pessoa branca com o mesmo currículo que o nosso.

Também é preciso um recorte de gênero e imigração. O nipo-brasileiro, em certas ocasiões, está na mesma condição de privilégio do branco, mas um sino-brasileiro, por exemplo, vai enfrentar obstáculos a mais, porque ainda se lê a imigração chinesa como ilegal.

CC: De que forma a existência dessa “minoria modelo” reforça o racismo anti-negro?

GS: Lembro claramente de uma imagem que vi ano passado dizendo que os japoneses também vieram para o Brasil à força em navios, em condições sub-humanas, para trabalhar em condições análogas à escravidão. Em seguida, comparava o sucesso dos nipo-brasileiros com o dos negros.

Isso reforça o estereótipo. Enquanto se coloca os asiáticos como uma minoria esforçada, estudiosa, e que consegue ascensão econômica e social sem assistencialismo, o negro fica do outro lado, como oposição. Isso tem um gosto de determinismo biológico, racial, sendo usado em pleno século XXI.

Então usam duas histórias completamente diferentes para argumentar a favor da democracia racial e contra cotas e ações afirmativas, como se realmente não existe racismo estrutural no Brasil.

Hoje, isso também acontece com muçulmanos. Estamos em uma época em que a islamofobia é o maior instrumento para pavimentar o totalitarismo. Aqui no Brasil esse discurso não é tão pronunciado, mas nos EUA é mais forte.

Da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos surgiu um laço de solidariedade entre asiáticos e negros

CC: O que essa “minoria modelo” pode fazer para, no mínimo, não reforçar o racismo anti-negro?

GS: É reconhecer privilégios. O movimento asiático é fundamentado em política identitária. O perigo disso é não fazer um recorte de classe e de gênero. Em relação à anti-negritude, é reconhecer privilégios.

Isso significa não tentar equiparar nenhuma das lutas, em nenhum aspecto, e o mais importante é o diálogo dentro das nossas comunidades, que muitas vezes são muito conservadoras. É dialogar para tentar desmantelar a anti-negritude de dentro para fora.

CC: Historicamente, negros e japoneses estiveram juntos na luta pelos direitos civis americanos. A ligação surgiu aí?

GS: Vem daí, com certeza, porque na época que começou o movimento do Perigo Amarelo com os Panteras Negras, foi depois da guerra, depois do internamento forçado de japoneses e nipo-estadunidenses, então começaram a questionar isso, bem como a exclusão a asiáticos que ocorreu nos EUA. Foi então que começaram a criar essa solidariedade, e é lógico que a solidariedade antirracista é o maior medo da supremacia branca.

A minoria modelo existe antes disso, mas ela se reforça, passa a ser essencial no discurso da branquitude para tentar dividir o movimento. Isso, aliado com várias outras políticas, como a guerra às drogas, influenciam muito na desestruturação dos movimentos e das comunidades.

CC: No Japão, mesmo, alguns lugares e seus descendentes são menosprezados, como Okinawa. Por que isso acontece?

GS: Okinawa é étnica e culturalmente diferente do Japão. Eu não sei se é uma comparação que extrapola, mas no contexto brasileiro, para as pessoas entenderem, eu digo que okinawano é tão japonês quanto um Guarani Kaiowá é português.

Tanto o território okinawano, quanto o norte do Japão, são territórios indígenas que sofreram um processo de colonização. Em 1888, aboliu-se a escravidão no Brasil. Apenas dois anos antes Okinawa foi anexado politicamente ao Japão. É muito recente.

Lá, o preconceito é fundamentado principalmente na língua, porque o japonês de Okinawa é quase um dialeto, além de terem outro idioma próprio.

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