O que mais me assusta é que muitas pessoas racistas poderiam ter sido meus porquês. Na escola, na família, no círculo de amizades.
Por Jéssica Rosa, do HuffPost Brasil
Pouco tempo atrás, a internet foi inundada com vários textos sobre a série 13 Reasons Why. As pessoas aparentemente perceberam que não se pode ser cruel com alguém, porque nunca saberemos como aquela pessoa reagiria. Por mais bizarro que isso possa parecer, já que é óbvio que temos que ser legais com as pessoas, aparentemente a internet teve momentos de epifania com uma série adolescente, que reforça estereótipos étnicos bem problemáticos, mas que, de maneira geral, é bem triste e alerta sobre um problema crescente no mundo todo: o suicídio.
Sempre me preocupou, no entanto, que coloquemos rótulos como bullying em situações assim. O que a Hannah Baker sofreu não foi bullying. Foi machismo, foi abuso sexual e psicológico que sofreu por ser mulher. Divulgação de fotos, a fama que se adquire pela suposta transa no primeiro encontro, a classificação de suas partes corporais como se classifica as partes corporais de um boi em um leilão de gado, o estupro.
13 Reasons Why está longe de ser uma série fácil de assistir e pode ser um gatilho para muitas mulheres que passaram por situações parecidas. Para os homens, é ver escancarado na sua frente como é difícil ser uma mulher adolescente. E essa dificuldade é fruto da crença masculina perpetuada socialmente de que nosso corpo não nos pertence. De que nosso corpo é público o suficiente para que nos classifiquem, nos toquem, nos violente, nos comente. É um problema que não pode ser mais ignorado, mas foi. Em todos os debates que eu li sobre essa série, pouquíssimos tocavam nesse ponto. É preciso que as pessoas entendam que 13 Reasons Why não é sobre bullying. É sobre machismo.
Cara Gente Branca
Recentemente, outra série incrível foi disponibilizada pela Netflix: Dear White People (Cara Gente Branca, em português), uma das melhores séries que eu, como mulher negra universitária, pude ver, com gente negra protagonizando e tendo seus dramas no espaço acadêmico lá, em cena. O que me assusta é que, a esse ponto de 13 Reasons Why, meu Facebook inteiro já tinha maratonado essa série. Já estava comentando, já tinha hashtag #nãosejaumporquê etc.
Até agora, a maior parte das pessoas minimamente interessadas são negros ou amigos próximos brancos, com quem eu falo constantemente sobre os problemas de raça. Não tem textão, não tem hashtag.
O que mais me assusta é que muitas pessoas racistas poderiam ter sido meus porquês. Na escola, na família, no círculo de amizades, nos relacionamentos. Muitas vezes, o ódio pelo meu cabelo, minha cor, meu corpo e meus traços me fizeram pensar seriamente que não valia a pena tanta dor. Ainda hoje, depois de muito empoderamento, há dias difíceis e eu convivo com problemas de ansiedade por conta disso. A percepção de que não se é bonita, pela falta de representatividade, o genocídio da população negra, os olhares que recebo, não são fáceis. E ainda é muito mais fácil para mim, negra de pele clara, seguir a vida do que muitas negras de pele mais escura.
O que mais me assusta é que muitas pessoas racistas poderiam ter sido meus porquês. Na escola, na família, no círculo de amizades, nos relacionamentos.
Cara gente branca pode levantar debates sobre solidão da mulher negra, a pressão dentro e fora para ser uma militante negra em específico, já que se espera de nós que sejamos fortalezas, sobre relacionamentos inter-raciais, sobre o racismo institucional, sobre genocídio da população negra praticado por uma polícia racista, sobre gente branca que não escuta, que não se reconhece como racializado, que não se sente racista, porque beija negras ou negros, mas só nos fetichiza, sobre apropriação cultural… Entre milhares de outras questões que estão sendo amplamente ignoradas pelas pessoas do meu feed de notícias. Ninguém está interessado em ouvir que é racista. Cara gente branca toca em uma ferida que a branquitude não quer reconhecer.
As pessoas querem esquecer que a escravidão existiu e jogam o problema racial da atualidade para a responsabilidade dos negros. Cara gente branca, esse problema não é meu. Esse problema é de vocês e, por mais que eu aponte o quão ruim vocês são, não significa que eu tenha que resolver isso. Vocês são os racistas, vocês precisam resolver isso, vocês precisam acordar para a necessidade de reconhecer que vocês também têm uma raça, que têm privilégios por isso e que isso é problemático porque vocês não estão sozinhos no mundo.
As pessoas querem esquecer que a escravidão existiu e jogam o problema racial da atualidade para a responsabilidade dos negros. Cara gente branca, esse problema não é meu.
Cara gente branca, acordem. Parem de ignorar o mal que vocês nos fazem. Parem de ignorar que vocês são um porque, mesmo que vocês sejam super legais e até tenham amigos negros, que vocês amem nossa cultura e nossos cabelos e corpos. Apenas parem de dizer que a temática de Cara gente branca não lhes interessa. Vocês são o meu porquê. Ainda que eu não tenha me matado, as feridas que vocês me fizeram deixaram cicatrizes. Ainda que eu não tenha feito fitas. Assistam Cara gente branca e melhorem. O problema do racismo é mais de vocês do que meu.
*Jéssica Rosa tem 19 anos, é estudante de história da Unicamp e feminista negra. Tem interesse pela história da África contemporânea e pelo movimento negro no Brasil do século XX.
*Este texto foi originalmente publicado no blog Eu, Tu, Elas – Feminismo na prática