O homem branco brasileiro de condomínio e o ato simbólico de “descer”

No documentário Um Lugar ao sol (Daniel Mascaro, 2009), sobre moradores de coberturas, temos um clássico exemplo de como a arquitetura brasileira revela a busca pelo poder. Vimos, ao longo dos anos, os apartamentos e as casas com quartinho de empregadas (sem janela), pois é preciso que a doméstica se sinta “sufocada” de alguma forma, até os recentes condomínios fechados, horizontais e verticais. Os primeiros, longe dos centros urbanos, cujo acesso difícil só permite carros ou ônibus para levar os trabalhadores. Segurança máxima, câmeras, três ou quatro pessoas nas portarias. Um constrangimento enorme para os subalternos que precisam se dirigir a estes espaços todos os dias. Já os apartamentos verticais, das classes médias, é um show de horrores todos os dias. A diferença é que não temos uma Rede Record da vida, com o seu jornalismo sensacionalista, em conluio com a polícia, plantada nas portas ou dentro dos prédios para mostrar as barbaridades que acontecem ali, desde violências físicas, feminicídios, tráfico de drogas e armas, como no famoso condomínio Vivendas da Barra, no Rio de Janeiro. A polícia ali pia fino e, o direito à imagem é preservado, ao contrário dos condenados da terra das favelas e periferias.

Pois bem, os corpos que circulam nestes espaços, diga-se de passagem, ilhas, moldam uma certa mentalidade, visão de mundo, valores e comportamentos ou, são justamente construídos para atender a um público com determinadas expectativas. Desde a minha graduação, quando escrevi sobre jovens de periferia e perspectivas de futuro, interessa-me os espaços e territórios ligados às aspirações individuais e aos comportamentos. Longe do determinismo, tem uma vasta gama de literatura na sociologia que aborda a influência dos espaços, da configuração social e da rede em que o sujeito está inserido, na sua forma de pensar, agir e até o que esperar do futuro. Norbert Elias é um dos teóricos que fala sobre isso em Sociedade dos indivíduos. Ele diz que:

A ordem invisível dessa forma comum, que não pode ser diretamente percebida oferece ao indivíduo uma gama mais ou menos restrita de funções e modos de comportamento possíveis. Por nascimento, ele está inserido num complexo funcional de estrutura bem definida; deve conformar-se a ele, moldar-se de acordo com ele e, talvez desenvolver-se mais, com base nele. Até sua liberdade de escolha entre as funções preexistentes é bastante limitada. Depende largamente do ponto em que ele nasce e cresce nessa teia humana, das funções e da situação de seus pais e, em consonância com isso, da escolarização que recebe. (ELIAS, 1994, p 21)

Mas, eita povo bom em arrotar “liberdade” e diferenciação! A ordem que eles e elas não podem ver, forma uma série de homens e mulheres com comportamento, valores e visões de mundo iguais, em série. Fabio Mallart, na sua tese de doutorado apresentada na Universidade de São Paulo, intitulada Findas linhas: circulação e confinamento pelos subterrâneos de São Paulo, mostra a cidade como constituída por ilhas e arquipélagos, cujos corpos só circulam em determinados espaços. Com relação aos pobres, eles vão das periferias e favelas para prisões, Fundação Casa, Manicômios, Órgãos de assistência social, num movimento de circularidade. Embora o seu recorte não seja as “ilhas” dos extratos médios e altos, podemos apontar que estes corpos também se movimentam em espaços específicos: condomínios, shoppings, academia, hospitais e escolas particulares etc. As diferentes classes sociais se encontram nas portarias dos condôminos, nas cozinhas, nas áreas de serviços, sempre de forma vertical, numa relação de subserviência de uma à outra.

Quando acrescentamos raça e gênero nesta leitura, temos o resultado de uma perversidade sem limites, típica do Brasil colônia: o homem branco, classe média, medíocre e viril. Este homem tem a vida facilitada pelo racismo estrutural brasileiro e pelo patriarcado, é demasiadamente livre para cometer micro agressões no dia a dia, como destratar porteiros, domésticas, vendedores, até crimes mais bárbaros, como jogar um botijão de gás pela janela do seu apartamento em cima de vendedor ambulante, como o ocorrido em Copacabana, no ano de 2020, matando o trabalhador. Ou quando um porteiro negro é barbaramente espancado depois de um morador se recusar a descer e, outro ainda, depois de pedir a um casal para não circular com roupas de banho, pois é proibido pelas normas do condômino. E, quem disse que estes homens (e mulheres) aceitam leis, normas, restrições? Este país é o paraíso para qualquer medíocre branco com dinheiro, vide o desembargador “com contatos”, no período da pandemia que foi solicitado a usar a máscara em espaço público, mas enfuriou-se: “Você sabe com quem está falando?” Num país democrático, verdadeiramente democrático, com instituições que funcionam para fazer valer o princípio de igualdade perante a lei, a resposta seria: “Com mais um branco com síndrome de Dom Pedro”. Mas, não, as ilhas e os arquipélagos existem e são construídos justamente para que este poder seja exercitado, pois já dizia o filósofo francês Michel Foucault: “O poder não é algo que se tem, mas que se exerce”. É preciso, todos os dias, mostrar que tem para sentir que o tem.

O último acontecimento, envolvendo um entregador de IFood é dilacerante. O casal branco não quis descer para pegar a encomenda. O casal não quis descer. Repito: não quis descer. E, aqui, “descer” tem muito mais uma conotação de poder do que uma ação de levantar a bunda do sofá, abrir a porta, apertar o botão do elevador e se dirigir à portaria. Descer, para este homem mediano, da ilha condomínio, é uma afronta. É abrir mão do seu poder de ter a comida na porta, quase na boca, com um sorriso cordial do subalterno e o prazer de ver no outro o olhar de sofrimento pela rotina exaustiva de trabalho. O homem branco brasileiro de classe média e da burguesia, é um homem perverso, um homem cheio de ódio, de caprichos e privilégios e, ninguém consegue pará-lo, pois ele está no judiciário, na medicina, nas empresas, por trás dos roteiros de novelas, programas e telejornais, elaborando projetos de lei, despachando do seu gabinete… Este homem, da sua ilha, comanda o Brasil e é ele quem diz onde é o lugar do corpo racializado e empobrecido: “Venha até mim e venha calado, eu preciso olhar na sua cara para saber quem eu sou”.

Nilton Ramon de Oliveira, se recusou a subir para entregar a comida nas mãos de seus algozes. O policial Roy Martins Cavalcanti foi atrás dele, o insultou, o perseguiu, o agrediu e, como o rapaz não abaixou a cabeça, o tiro. O homem branco brasileiro de condomínio não serve para viver em sociedade. Ou derrubamos os muros e destruímos as ilhas ou os isolemos, até mesmo dos seus prestadores de serviços. É um risco para a vida do nosso povo trabalhador.


Fabiane Albuquerque é doutora em sociologia


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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