O que as urnas revelam sobre o racismo nosso de cada dia

No Brasil todo mundo já namorou uma negra. Chamou um negro de genro. Adora ouvir as histórias do porteiro (que é negro). Considera a diarista (também negra) uma pessoa da família. Se emociona quando vê aquele gari (negro) que gosta de sambar, ser aplaudido pelos gringos. Tamanha harmonia é a consumação plena da principal regra da nossa democracia racial. Ou seja, a população negra sempre será tratada bem, desde que saiba qual é o seu lugar e dele não queira sair. Curioso como o gari continua sendo gari mesmo depois de tantos anos aparecendo na televisão.

Foto: Gabriel Brito/Correio da Cidadania

Por *Jorge Américo e **Douglas Belchior, no Negro Belchior 

Se não falha a memória, o ex-jogador de futebol Pelé foi o primeiro ministro de Estado negro do período chamado de redemocratização do Brasil. Sua nomeação para a pasta de Esportes se deu no ano de 1993, no governo FHC. Caso a preguiça desse uma trégua, seria muito proveitoso investigar se ele não terá sido o primeiro da história republicana. Dez anos mais adiante outro negro de renomada trajetória, Gilberto Gil, assumiria o ministério da Cultura, no primeiro mandato de Lula.

Pelé e Gil são dois ícones da cultura nacional. Chegaram ao topo dos únicos lugares onde negras e negros podem chegar ao topo. Um fez carreira no futebol, outro na música. Pela experiência e capacidade intelectual, tinham credencial para serem ministros da Saúde e Educação, respectivamente – podendo comandar dois dos orçamentos mais gordos da União. Afinal, a prática esportiva (aliada a uma alimentação adequada) é o que existe de mais avançado em saúde preventiva. E a capacidade criativa e postura crítica diante dos dilemas da humanidade são o melhor que um sistema educacional público e de qualidade poderia oferecer aos nossos jovens.

Mesmo no período de maior expansão das políticas de ações afirmativas, poucas alterações ocorreram nas estruturas de poder. Com rara exceção, a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) – criada por Lula e extinta por Michel Temer – se tornou o ministério exclusivo das negras e negros, o único lugar onde puderam exercer cargos de primeiro a décimo escalão. Era praticamente o quartinho da empregada do Palácio do Planalto. Ao mesmo tempo, muita gente incompetente (e pouco comprometida com os brasileiros que vivem com as menores rendas) esteve à frente dos ministérios da Fazenda, Planejamento e direção do Banco Central. Como diz a brilhante Rosane Borges,“em um período de avanços sociais a população negra foi beneficiária, mas nem sequer foi cogitada para ser gestora de políticas públicas”.

Vez ou outra algum dirigente de alta patente se colocou a favor da reserva de vagas para negros nas universidades e concursos públicos, mas ninguém praticou a pedagogia do bom exemplo. Nem as sucessivas chefias da Presidência da República nem dos governos estaduais e municipais se preocuparam em ter sua cota ministerial ou de secretariado formada por negras e negros. A universidade e as mobilizações populares produziram mão-de-obra negra qualificadíssima no último período. Isso significa que o corpo técnico e político das instituições públicas só não abrigaram negras e negros por opção de quem estava na Direção.

Esse esvaziamento e falta de diversidade étnico-racial também é comum nos cargos eletivos, responsabilidade do povo brasileiro em geral, este sob radical influência do meio ambiente racista a que somos expostos desde que nascemos. Existem perguntas que não são feitas por questão de decoro, mas que estão colocadas e devem ser enfrentadas com sinceridade. Principalmente num momento – eleitoral – como este, em que tanta gente coloca seus dons, talentos e boas intenções a serviço da população. Afinal, quem aceita ser representado por uma negra ou um negro na prefeitura ou na câmara municipal? Quem é capaz de reconhecer que não é racista na vida cotidiana, mas o é na hora de votar? As urnas revelarão este segredo que cada um esconde no coração.

 

*Jorge Américo é jornalista, poeta e educador popular.
**Douglas Belchior é professor de história e editor deste Blog.

+ sobre o tema

Homem branco privilegiado (não) é o centro do universo?

Nosso sistema educacional foi estruturado de maneira a favorecer as...

Israelenses de origem etíope protestam contra racismo

Ao menos mil israelenses de origem etíope e militantes...

para lembrar

Somos todos macacos‬? – por Felipe Soares

Texto enviado para o Portal Geledés Essa brincadeira de ser...

Desembargador Paulo Rangel ministra palestra na Defensoria Pública sobre menoridade penal

Enviado para o Portal Geledés O auditório da Fundação Escola...

Moradores reclamam de violência policial no Alemão; PM nega abusos

Isabela Vieira*Repórter da Agência Brasil Rio de Janeiro- Menos...
spot_imgspot_img

‘Piada’ de ministro do STJ prova como racismo está enraizado no Judiciário

Ontem, o ministro do STJ João Otávio de Noronha, em tom de "piada", proferiu uma fala preconceituosa sobre baianos durante uma sessão de julgamento. A suposta...

Identitarismo, feminismos negros e política global

Já faz algum tempo que o identitarismo não sabe o que é baixa temporada; sempre que cutucado, mostra fôlego para elevar o debate aos trending topics da política...

Gilberto Gil, o filho do tempo

Michel Nascimento, meu amigo-irmão que esteve em Salvador neste ano pela milésima vez, na véspera da minha viagem, me disse que uma das coisas...
-+=