Pilares e silhuetas do texto negro de Conceição Evaristo

Autor desta resenha, Allan da Rosa é escritor e angoleiro. Integrante do movimento de Literatura Periférica de SP, cursa o doutorado na Faculdade de Educação da USP. Autor de Da Cabula, Zagaia e Pedagoginga, Autonomia e Mocambagem, entre outros títulos. Em outubro lança Reza de Mãe, livro de contos pela Editora Nós.

Por Allan da Rosa, do Suplemento Pernambuco

Quantas linhas de Conceição Evaristo seguem nos alumiando a sina, o fundamento e a boniteza de revelar segredos mas não matar mistérios? Quanto de vagareza intensa há na sua prosa sutil e elegante que caminha, baila e salta sem alardear os saltos de seus sapatos? Quanto há de traquejo e de gritos cultivados no silêncio das negras anciãs que traz às suas páginas? Quanto haverá de percepção do tempo, do chão e das lutas que canetas pálidas há tempos chamam de fantástico, sem compreenderem que nosso imaginário, por suas matrizes africanas e pelos venenos do convívio do lado de cá do Atlântico, preza a ancestralidade trançando épocas num mesmo timbre, enamorando o tangível do dia com o perfumoso das noites? Quantos enredos de Conceição Evaristo a não caber na gaveta de um realismo temperado a raciocínio gelado, descarnado e desencantado, e nem de uma fantasia apta a agradar negociatas de estereótipos em prateleiras imperiais? Quanto das gotas de Conceição Evaristo trazem o balanço do mar em plenas alterosas mineiras, em contos curtos que começam como um sopro e terminam sua passagem feito um toque agudo na beira de um tambor? Quanto de vassoura de empregada doméstica, de avental de magistério e de diploma de doutorado, peças íntimas da autora, deixa reticências pontiagudas se emaranhando em ocos do racismo brasileiro que é semelhante ao de tantas paragens caribenhas?  Quanto há de fortaleza e graça em sua paciente teimosia de bordar as espirais de ontem, as paisagens de futuro já cantadas há séculos e as urgências contemporâneas que nos espetam e assam nessa terra coalhada de segregação?

Em seu mais recente livro, Histórias de leves enganos e parecenças (Malê Editora), de bela, simples e fundamental  feitura pela  nova editora Malê, Conceição Evaristo mergulha com ainda mais fôlego em princípios que já se desenhavam nas atmosferas de seus romances Ponciá Vicêncio e Becos da Memória (ambos pela Mazza Editora). Os mapas ainda tem as mesmas cores e silhuetas, estampam as curvas da Minas Gerais que é Congo e das alturas do Rio de Janeiro que é Angola antiga, hoje em nós. Trazem os sussurros, desabafos e revides de quem há 500 anos girando moinhos elabora malícia e gana nas esquivas pela necessidade de manter a coluna aprumada e a prole viva. O texto de Conceição Evaristo alarga o colo e o suspense das rodas de conversa noturna. Estende motes antigos servindo novas perguntas e espaços a pessoas que povoaram histórias de roças e de quartinhos recheados de crianças com avós partilhando o que a pouca farinha pudesse contemplar. Mescla prismas da mais digna altivez e da mirada de baixo pra cima, própria da humildade e também do cangote curvado por viciosa resignação ou estratégia. Abre asas enlaçando miudezas de africanias e estruturas gastas e corrosivas de Brasis que, seja nos litorais, nos interiores montanhosos, nas matas enluaradas, nos mangues cercados ou nas esquinas cimentadas, por tantas vezes nos lembram Soweto e Mississipi.

A poesia de Conceição Evaristo é comovente e também um exame ardido dos pilares de nossa sociedade. Sem simplismos mas com fluência arrebatadora, seus versos pairam e magnetizam nas rodas, tão serenos quanto trovoadas que sussurram. Cantam luares e quilombagens, perdas e gozos, num tom e garimpo que se distingue um pouco de sua obra em prosa, que se é menos contundente e explícita na chamada à malungagem (o que faz com uma tecelagem mais subterrânea) é mais porosa a contradições, labirintos e surpresas. Este sabor, seu jeito de forno, vem mesmo desde suas primeiras ficções em “Cadernos Negros” e nas novelas que esperaram décadas por publicações aqui e por debates e traduções pelo mundo. São ainda incipientes aos clubes oficiais da literatura brasileira, apesar do reconhecimento crescente e tardio que começa a vogar nos gabinetes e círculos regidos pela elite letrada da mesmice colonizada, a que adora parecer latino-americana oprimida nos círculos europeus mas que aqui balança a batuta de antigos canaviais em seus festivais. As diferenças entre a obra poética e a criação em prosa da escritora lembram a distinção entre a poesia e os contos de outro mestre escanteado há décadas pelo apartheid editorial brasileiro: Osvaldo de Camargo. Se as histórias deste escritor por vezes giram entre a melancolia e a ironia de personagens envolvidos em lanhadas memórias e devastadores dilemas imprevistos, seus versos são punhos cerrados e paródias agudas dos símbolos furados da chamada democracia racial de cá.

Em “Histórias de Leves Enganos e Parecenças”, como levanta manhoso o próprio título, o que parece e aparece é vigoroso em si, dispensando qualquer aval que o sustente como real sem considerar que a imagem e o que muitos pintam como inexato, descartável ou enganoso é mesmo o miolo ou a tradução de um jeito de sentir o tempo e as relações humanas. Não orna com um materialismo cartesiano que desqualifica o que seus limites eurocêntricos não compreendem e que limita o imaginário como se este fosse um vizinho de parede-meia e não uma habitante principal do nosso templo que é o próprio corpo e que na carne, no gesto, na coluna, na memória e no sonho contempla e orienta nossas maneiras de organizar e sentir a vida. É um livro aos capazes ou desejosos de compreender o namoro e as tretas entre racionalidade e encanto.

As histórias às vezes tão curtinhas terminam num rasante, um clímax que rasga ainda o primeiro respiro do leitor. Imprevistos, sem pistas pro que virá, no susto de seus finais perguntamos das trilhas possíveis na sequência dos tremores. Inevitável conjeturar rumos pras personagens após os choques de término de história. Se tão pequeninas as que iniciam o livro, cresce o leque de surpresas e aparecem condensados tabuleiros onde do jogo jorram detalhes de dramas ardidos. Com leveza, Conceição traça nuances de resistência e de anunciação, traduz atmosferas do sem-tempo. Há também ocasiões em que se escuta com graça o sotaque e o volume das personagens marrentas em meio ao turbilhão de chacotas ou ao mel do romance acontecido entre pedregulhos. E sotaque é algo delicado de se lograr na página sem forçar nem resvalar na linguagem caricatural ou excessivamente regional, saturada de vocabulários pitorescos.

O conto “Grota Funda”, por exemplo é magistral. Trata do mistério de um abismo montanhoso e de variações que a cidade conta, emaranhando mini-contos dentro de uma historinha imensa e inesquecível. Aqui, ritmando a tensão entre convenções e repiques, Conceição aborda a sanha, os castigos da coragem, o pus do pudor e da covardia. Lido o conto ao meu pequeno de 9 anos e à minha coroa de 74 primaveras, as íris espantadas e agraciadas foram as mesmas, mas diferentes as perguntas que transcendem moral e ideologia. Este poder de contadora Conceição exerce tratando de vingança e de prudência, de maledicências e de curas, mas sobretudo de fé na reversão da hipocrisia e do chicote com gotas de libertação que não são ingênuas nem pragmáticas. Quando fende sua perspectiva de conduzir de longe a cavalgada das histórias, ao se situar como narradora opinativa diante das vozes murmuradas de seus personagens, apresenta motes que vaporam de um catolicismo mineiro-africano, lembrando a Etiópia da igreja que é anterior ao Vaticano, os spirituals urbanos do Bronx e a Jamaica do reggae que brada o velho testamento bíblico na versão calorosa dos escravizados da diáspora. Porém, Conceição alinhava com a mumunha e a cadência das Minas Gerais que louvam a Nossa Senhora das Reminiscências nas pretices congadeiras do Rosário e nas guardas de Oxum.

Conceição brinda a sede dos xaropes que ainda navegam pela leitura de parágrafos lentos e radiantes, de prosas que não se aceleram em pleno tempo dos fragmentos, slogans e de hegemonia dos pontos de exclamação sufocando sugestões. Assim ela propõe charadas, modula disfarces fundamentados e ensina sobre a força das cores em símbolos que disfarçam a guerra na quilombagem pontilhada a cada manhã. Desenha situações que remetem às casas amassadas e pintadas à mão pelas mulheres Ndebele, da África do Sul diante da truculência bôer, quando a cor preta junta ao amarelo e verde do Congresso Nacional Africano era censurada. Ali, as artistas e moradoras Nguni compunham suas arquiteturas e pinturas em sintonia com a passagem do tempo na soleira, armavam as cores na porta pra combinarem com certas posições do sol, quando a natura é que traria e pintaria o preto com a sombra que deixaria nas portas, perfazendo então na entrada da moradia (ê porteira: este entrelugar tão poderoso) o trio de cores proibidas coroando diariamente a desobediência. Coisa de quem tem gana e conhece técnica e segredo.

Conceição Evaristo refaz a multiplicação dos peixes com farelos pra bolo, reverte pragas orientando que aos tropeçados e grudados na arrogância, quando mordidos pela matriz que abandonaram, basta retomar o novelo da volta. Se nos melamos no sangue vertido pelos olhos da personagem Dolores, se reencontramos os desafios do nome em “Inguitinha” e se conhecemos a guarida improvável que “Rosa Maria Rosa” oculta, é de praxe no livro a chamada do “dizem que…”, do “naquele dia em diante…” e do “pra sempre foi assim…”, num vago que paira e colore o tempo. A autora coloca o leviano e a ganância na lupa, demonstrando a demagogia dos mandantes. A vaidade abre rebuliço e a falta de zelo tocaia de vergonha quem disputa status e poder endinheirado enquanto as comunidades fissuram os tornozelos por um banho ou uma xícara de sustança. Mapeando a ternura e a brutalidade, a gratidão e a arrogância, os textos do livro pinçam vagalhões humanos que a leva de anos atentos a detalhes propiciou ao cesto de Conceição, que assume as divagações éticas de frente, mas não tem caneta doutrinária.

Após os contos vem “Sabela”, uma breve novela. Aqui, a enchente que arrasta para redimir, azucrinar ou matar cada habitante da cidade e seus segredos e vexames, também pesca os leitores. As águas avermelham, gemem, racham, entronam. Conhecem rouxinóis amordaçados e deixam a sugestão bravia de seu poder de vingança. Nessas beiradas e funduras, a anciã Sabela é o espírito nobre traquejado à lameira das esquinas, morros e egos da multidão. Os graves estorvos do percurso não lhe embruteceram. Úmida e de quentura acolhedora, mestra em partilhar e descobrir dons, Sabela conhece a história de afogados que afundaram ou se salvaram, gente que é caldo de fascínio da história, expostos em suas sutis toneladas e agonias, varados pela hipocrisia e fragilidade da sociedade que tanto reza e pune mas pouco ama e harmoniza. Força de Conceição Evaristo é abrir vasculhas na sensorialidade de quem lê e compara memórias e pequenos desfechos de trechos perdidos na linha da vida, estes nossos tecos de mitologia pessoal sempre à espreita aguardando um assovio, um aroma, um belisco. Porém, pinica na gola do leitor enxerido a alfinetar a colcha tecida por outras mãos, os motivos dos personagens que regressam nas partes finais da história não trazerem mais do que já sabíamos por Sabela. Por que eles voltariam? Apenas para reforçar o já tão bem contado, demonstrando a onisciência da mais velha ou para apresentar furos dos avessos e notarmos que nem mesmo a anciã (e a narradora) da vasta sabedoria ainda assim não pode dar conta dos tantos labirintos de um ser?  Após as páginas que arrebatam e que nos fazem de jangada, eles poderiam aportar de volta para contrariar ou deslindar lacunas que nem Sabela poderia revelar? Vergonhas, soberanias e traquinagens outras? Sabela é mulher que é lua cheia predestinada em um céu de estrelas-gente que se temem e se devoram buscando guarida e comungando uma paisagem miraculosa. Na imagem tecida por Conceição e que idealizamos da vasta e miúda mulher, caberia descobrirmos se nem ela poderia deter em sua intuição e sabedoria o que pessoas trincadas pelo racismo e por seus segredos poderiam guardar em seus porões ou oferecer baixinho em suas veredas longe de casa?

Neste tempo de tanta ‘cultura negra’ ou ‘popular’ sem preto, sem periferia e sem favela, imãs de moeda pelos holofotes e vitrines ou pretextos de negociata para editais, o livro também é uma zagaia afiada (ou um ninho quentinho, a depender da palma que o segure). Uma grandeza da obra é que o centro das histórias, no imaginário entranhado e ao mesmo surpreendente na gente, é o corpo preto. Sim, a ‘cultura’ está ali em cada sopro, porém Conceição Evaristo mergulha com sapiência muito mais no cotidiano cintilante ou enrugado do que nos rituais. Assim é no corriqueiro, escamoso e abençoado de cada minuto que sua prosa colhe o encanto dos revides, das dúvidas, dores e carinhos. No cotidiano. Com todo o balaio se alinhando conforme a presença do corpo negro, ela desvia com simplicidade de qualquer deslumbre sanguessuga. Ressalta os pilares da dança, o tambú e as gamelas, sim, mas o que rege os percursos dos contos é o corpo preto nos ambientes, sejam eles quais forem, se dentro de gravatas ou de enchentes. E esse nó de escritora vagarosa e sapiente os chupins não vão conseguir desatar.

Conceição com nitidez e sagacidade desvencilha-se das miradas meramente culturalistas que instrumentalizam vivências, invenções e linguagens de histórica matriz africana no Brasil de ontem e de hoje. Seus contos, sempre mediados pelas marcas, respiros e pegadas do corpo negro, principalmente o feminino, não abrem respiro para uma folclorização se estabelecer, seja a que mofa estagnada ou a das que se propõem dinâmicas e atentas às “invenções da tradição”. Isso porque pode se vincular a chamada “cultura negra” a um leque largo de símbolos e até se aprender a batucar, plantar, entoar rezas de fonte ou de linguajar afro-brasileiro; porque pode se vestir, erguer moradias ou se gestualizar de acordo com ditames, didáticas ou espetáculos adequados a uma presença diversa que se entranha a vários lugares das diásporas africanas fundamentadas em luta contra a escravidão, mas Conceição adentra no que não é espetacular e não se pode marionetar tão fácil das marcas ainda aviltadas e consideradas demoníacas por fanáticos e racistas, sobretudo o corpo. O texto flutua repelente a uma estereotipia ou mesmo às tão bem intencionadas e patéticas intenções de “resgate” do que se carimba, se lida ou mesmo se vende como “cultura negra”. Os contos não cabem no afunilamento ou na anestesia operados mesmo que inconscientemente entre muitos meandros da indústria do entretenimento ou de uma maniqueísta ilusão de conservação de conteúdos. Entre nossas majestosas e humildes máscaras, arquiteturas, partituras e cardápios, antes repelidos e hoje até monetarizados por fora, mesmo que fosse possível seria desejado pelos mais animados culturalistas uma pele e(m) um corpo negro para assim atravessarem as ruas e as pancadas mentais neste país racista até à medula? É o corpo em seus aspectos sortidos o eixo e a encruzilhada-mór da presença das personagens de Conceição. Para além de imprescindíveis e vitais rituais, as nuvens e rochas do cotidiano envolvem o tecido vivo preto por sua presença que afronta, em si, as versões harmoniosas de um bem viver brasileiro em qualquer situação por onde este corpo se desenvolva, se encolha, se arrebate ou se municie.  Em vários momentos prevalecem nos contos partes do corpo, símbolos autônomos mas integrados ao seu conjunto de ossos, músculos, suores e às façanhas do sonhar. Vide o papel central dos pés, do suvaco, dos cabelos, do sangue ou das narinas nalgumas histórias e nos desafios e reviravoltas das águas da pequena novela “Sabela”.

A amplidão que Conceição Evaristo dá conta é a do dia-a-dia que se faz com os pelos em riste, o arrasto das chinelas, a fome das estradas e a ciência dos quintais e baldios. Ela escreve o cozimento do cotidiano embebido e retesado por forças que não se pode ver mas que suam e ressoam de dentro, forças que se cultiva e que não se esgotam nas folhas do calendário que ruma apenas prum futuro. E as histórias enredam a alegria sempre cabreira, a soltura que mantém um pé atrás, mostrando os castigos da caminhada ao preto que ousa esquecer sua origem e a expectativa geral diante de sua passagem.

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