A questão racial e a administração de recursos humanos nas empresas brasileiras

Em “Pondo os Pingos nos Is’ Sobre as Relações de Trabalho e Políticas de Administração de Recursos Humanos”, R.M. Fischer1 chama a atenção para o fato de que a Sociologia no Brasil parece não ter dado ainda a devida atenção ao estudo da filosofia e prática das políticas de administração de Recursos Humanos (RH) correntes nas empresas brasileiras.

por Jorge Aparecido Monteiro no Scielo

Este fato, segundo a autora, “não se coaduna, de forma alguma, com a importância que estas assumem no contexto organizacional, na medida em que são elas que efetivamente definem os parâmetros nos quais os padrões de relações do trabalho são constituídos, e atendem aos objetivos de crescimento e acumulação do capital e às necessidades de manutenção da reprodução da força de trabalho alocada, direta ou indiretamente, no processo produtivo”2.

Por outro lado, em A Integração do Negro na Sociedade de Classes, Florestan Fernandes argumenta que “o crescimento econômico compeliu muitas empresas, em todas as categorias econômicas, a aplicarem, com maior rigor, técnicas racionais de seleção, de supervisão e de promoção de pessoal”. Mais adiante afirma que “nas grandes organizações, privadas ou oficiais, as técnicas racionais de seleção, de supervisão e de promoção de pessoal põem ênfase nas qualificações dos candidatos e na produtividade do trabalho. A cor fica em segundo plano ou passa, para muitos efeitos, a ser pura e simplesmente ignorada. Graças aos efeitos dessa pressão qualitativa, o negro e o mulato encontraram oportunidades específicas em serviços nos quais antes eram sistematicamente evitados ou repudiados, nos escritórios, nas fábricas, nos bancos, em grandes empresas comerciais etc.”3.

Essas considerações de Florestan Fernandes sobre a introdução em nosso país das ideologias administrativas compreendidas na rubrica da administração científica, e há muito vivenciadas nos países de capitalismo avançado, levam-no a concluir, a partir de entrevistas com administradores brancos e empregados negros, que tal introdução”equivale, para os interesses econômicos e ocupacionais da população de cor, a uma autêntica revolução.”4.

Sem querer aqui entrar no mérito das estratégias utilizadas – e uma delas, provavelmente a mais comum, foi a de tomar o próprio branco como modelo de identidade5 – segmentos da população negra (pretos e pardos, segundo o IBGE) deste país vêm passando, nas últimas décadas, por um processo de ascensão social6. Contudo, além de ocorrer, principalmente nas regiões mais desenvolvidas do país, esse processo de ascensão, a nosso ver discutível, está longe de ser um processo revolucionário provocado pelas versões mais modernas da ideologia fordista e taylorista ou por qualquer outro tipo de americanismo7, como pode sugerir o texto de Florestan Fernandes.

Sem dúvida, a chegada ao Brasil, em torno dos anos 508, das idéias e de algumas práticas da chamada Escola de Relações Humanas introduziu elementos novos na forma de o capital administrar a força de trabalho neste país. A etapa legalista de lidar com a administração de pessoal, em que o advogado exercia um papel-chave face à preocupação básica de cumprir as exigências da CLT, cedeu, aos poucos, espaço para procedimentos mais sofisticados, como a aplicação mais generalizada de técnicas de avaliação de desempenho e de cargos, com vistas a uma remuneração mais adequada, segundo o nível de qualificação, treinamento, recrutamento, seleção etc.9; e começaram a ganhar peso outros profissionais dedicados à manipulação de tais técnicas, entre os quais se destaca a figura do psicólogo industrial.

O surgimento dessas técnicas nos países de origem e no próprio Brasil está ligado, principalmente, aos interesses do grande capital e não aos dos trabalhadores e, muito menos, aos dos trabalhadores negros, ainda que introduza nas empresas instrumentos a serviço da meritocracia e da modernidade. Como escrevem G. Mantega e M. Moraes,”o aumento da resistência popular e a maior organização das classes dominadas pressionam no sentido do abandono dos métodos de choque de exploração do trabalho (expansão da mais-valia absoluta, violento arrocho salarial, sindicatos atrelados ao Estado e sob intervenção etc.) em benefício de técnicas mais sofisticadas de apropriação da mais-valia (aumento da produtividade, permitindo certa melhoria no nível de vida dos trabalhadores). E os intelectuais orgânicos, como diria Gramsci, dessa nova proposta de dominação burguesa, atualizam-se com as últimas novidades políticas do capitalismo avançado (…) dourando a pílula do capitalismo ‘mais humano’ “10. Assim, nem o caráter racional, nem o aparente rigor científico de que são revestidas as técnicas de seleção, supervisão e promoção de pessoal, às quais se refere Florestan Fernandes11, são suficientes para lhes assegurar o apoliticismo e a neutralidade.

“Principalmente quando estas técnicas compõem o instrumental de administração das atividades das pessoas no sistema de trabalho”, escreve R.M. Fischer, “convém questionar vivamente este atributo de neutralidade, visto que elas têm, em geral, se revelado um instrumento ideológico eficiente para fundamentar propostas modernizantes e desenvolvimentistas em sociedades capitalistas. A ênfase na técnica pressupõe a existência a-histórica e a-política, a qual possibilita gerar soluções para problemas que são determinados política e historicamente”12.

Ainda nas palavras de R.M. Fischer temos que “qualquer técnica não pode ser tomada por si só, mas como elemento de uma totalidade mais complexa que a determina; como componente do quadro social e político no qual se insere, cujas características essenciais ela não pode acobertar ou mascarar pela força com que se impõe, baseada na eficiência dos resultados obtidos. O predomínio da razão técnica na sociedade moderna, o qual enfatiza na empresa as técnicas de organização, as técnicas gerenciais e de supervisão, as técnicas de maquinaria e equipamentos, e, no Estado, privilegia as técnicas de planejamento e de controle da vida social, é elemento componente do quadro ideológico legitimador do Capitalismo Monopolista”13. É claro que podem ser destacados diversos aspectos positivos resultantes da introdução de formas mais participativas e consensuais de administração da força de trabalho. A busca de critérios mais universalistas na seleção, recrutamento, remuneração etc. tem sido amplamente apontada pela literatura administrativa e gerencial. O rompimento com critérios clientelísticos, patrimonialistas e particularistas na administração de RH, além de contribuir para o aumento da produtividade do trabalho, tem sido a meta de toda administração que se diz moderna e democrática. Assim, a “modernização da administração de Recursos Humanos verificou-se prioritariamente nas empresas do setor dinâmico, que demandavam uma mão-de-obra da qual o mercado de trabalho era carente na ocasião, e que traziam tecnologias ou processos de trabalho que mudariam radicalmente as formas habituais de trabalho. Ou então, em empresas nas quais, independentemente de pertencerem ao setor dinâmico ou tradicional da economia, o modo como se administrava o pessoal já não se mostrava eficiente para manter o controle da mão-de-obra, em função de causas diversas, tais como: mudanças no perfil da oferta de trabalhadores, introdução de aperfeiçoamentos técnicos ou tecnológicos, alterações das características do mercado consumidor, e condicionantes conjunturais específicas.”14.

Por outro lado, diversos estudiosos do trabalho têm denunciado os elementos irracionais que se escondem ou se encontram mascarados pela face racional das modernas técnicas de administração da força de trabalho.

R. F. Semler, por exemplo, referindo-se à administração de salários, em um artigo bem humorado, diz que “dos tempos da virada do século até hoje evoluiu-se muito pouco na questão da administração salarial …”15.

M. Montmollin, tratando da avaliação de cargos e promoção de empregados escreve: “Avaliar os cargos não tem verdadeiramente nenhum interesse se os homens não podem progredir de um cargo para outro. Mas isto implica na versatilidade da organização e na existência de um processo adequado de treinamento. Estas duas condições são raramente reunidas. Para os chefes, saber que podem progredir, aumentar a competência e responsabilidade, ê uma motivação mais importante, hoje em dia, do que a remuneração. Para os empregados, e sobretudo os operários, a avaliação não tem outro objetivo senão mostrar mais claramente, mais explicitamente, mais cientificamente os limites da jaula na qual eles estão fechados, talvez por toda a vida. Todo este processo permite ao menos determinar um salário ‘objetivo’? Os problemas de remuneração são muito mais complexos do que isto, e entram em jogo muitas variáveis, principalmente sociais.”16

Os limites e o caráter ideológico da psicotécnica e do treinamento na empresa têm sido denunciados seguidamente pelo próprio M. Montmolin17, por M. Tort18, H. Braverman19, J. Roux20, M. Tragtemberg21 e outros.

Ao tomarem-se como parâmetro não somente os trabalhadores em geral, mas especialmente a grande massa de trabalhadores negros no mercado de trabalho brasileiro, é facilmente observável que as técnicas de seleção, recrutamento, treinamento, avaliação de cargos e remuneração são influenciadas não apenas pelas variáveis sociais, como apontam os textos acima, mas também pelas variáveis étnicas e de raça22.

Em outras palavras, as técnicas tidas como racionais na administração da força de trabalho, enquanto produtos histórica e politicamente elaborados, não têm conseguido romper com a discriminação em relação aos trabalhadores negros no mercado de trabalho, visto que, enquanto parte do “aparato e operações introduzidas pela industrialização”23 e pelo desenvolvimento econômico brasileiros, têm-se ajustado e conformado aos padrões raciais existentes em nossa sociedade. Além disso, enquanto parte das políticas e da filosofia de administração de recursos humanos, contribuem para a reprodução das situações de subordinação dos trabalhos não brancos, a exemplo da reprodução de subordinação das classes trabalhadoras.

O. Ianni, por exemplo, escreve que o operário negro “não desfruta dos mesmos direitos do operário branco que se acha em idêntica situação. Para ser igual a um operário branco, o operário negro precisa ser melhor que o operário branco. Na estrutura ocupacional e na escala de salários, o negro está em piores condições.”24.

Uma pesquisa realizada entre julho e setembro de 1985, pela Fundação Estadual de Análise de Dados (SEADE), órgão vinculado ao governo estadual de São Paulo e em conjunto com o DIEESE – Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos – , apresenta dados importantes sobre a situação de trabalhadores negros e brancos em um mercado de trabalho como o de São Paulo, onde se encontra grande número de empresas do setor dinâmico e tradicional usando os chamados procedimentos da administração científica na adminstração de sua força de trabalho.

Em média, antes do Plano Cruzado, o trabalhador branco ganhava Cr$ 4.580,00 por hora e o negro, pelo mesmo trabalho, menos da metade, isto é, Cr$ 2.140,00. Os dados revelam ainda que, tomando-se apenas os analfabetos, brancos e negros ganhavam salário praticamente igual. À medida em que aumenta o nível de instrução, o negro passa a receber, ainda pelo mesmo trabalho, salários progressivamente mais baixos. Negros que possuem o segundo grau completo, revela a pesquisa, recebiam em média Cr$ 8.715,00 por hora, enquanto o trabalhador branco recebia Cr$ 14.636,00, isto é, 59,5% a mais do que os primeiros. Portanto, além de lutar com grandes dificuldades para atingir o nível universitário, o negro tem que enfrentar a discriminação após o seu término. Da mesma forma, enquanto os chefes de família brancos ganhavam em média Cr$ 6.825,00 por hora, os chefes de família negros percebiam Cr$ 2.905,00, isto é, 116% a menos25.

É comum ouvir-se o argumento de que o trabalhador negro não consegue ter remuneração igual ao trabalhador branco ou o de que ele não ascende na hierarquia funcional das empresas por causa de seu baixo nível escolar. EmO Lugar do Negro na Força de Trabalho, estudo que já é um clássico sobre esse tema, os dados da PNAD – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios -, 1976, indicam que “a qualificação educacional tem um retorno desigual para brancos e negros inseridos na força de trabalho. Este diferencial é crescente e se acentua na medida em que aumenta o nível de escolaridade da força de trabalho.”26.

Os problemas enfrentados pelos trabalhadores negros ao tentarem ingressar nas empresas também são graves, e as técnicas modernas de recrutamento e seleção têm sido em muitos casos impotentes para saná-los. Nas palavras do diretor da Fundação SEADE, “o empregador, se tiver que optar, prefere empregar um branco. Mas se empregar um negro, paga menos.”27. Agências de emprego, por sua vez, costumam receber advertências quando enviam candidatos negros para determinados cargos em empresas-clientes28. As próprias autoridades trabalhistas, muitas vezes, não sabem como lidar com a questão. Sobre o problema racial as autoridades trabalhistas confessaram que estão num dilema: “Já pensamos em denunciar publicamente todas as empresas que fazem essa exigência, mas estamos desistindo da idéia, pois ela só seria prejudicial para nossos convênios.”29

Enfim, como escreve T. C. N. Araújo, “a inserção do negro na força de trabalho se dá, portanto, num contexto muito específico, marcado por práticas discriminatórias de contratação, remuneração e promoção de mão-de-obra. Esse é um fato reconhecido até pelo Sistema de Informações Nacional de Empregos (SINE), órgão do Ministério do Trabalho, que forneceu ao Conselho de Desenvolvimento e Participação da Comunidade Negra indicações sobre empresas que praticam discriminação. Tratava-se de casos em que a discriminação ou racismo não eram sequer escamoteados.”30.

Nesse quadro, é natural que se pergunte qual realmente tem sido o papel desempenhado pelas técnicas de seleção, recrutamento, avaliação de cargos, avaliação de desempenho funcional etc. frente aos processos discriminatórios praticados em relação aos trabalhadores negros. A ideologia liberal e neoliberal que as fundamenta destaca que a integração de trabalhadores no processo produtivo deve se dar tendo-se em conta, basicamente, a sua qualificação profissional e a produtividade. Ainda seria lícito indagar-se qual tem sido a posição dos profissionais de recursos humanos face a esses problemas, uma vez que atuam como manipuladores de tais técnicas e formuladores da filosofia, das políticas e diretrizes que orientam sua aplicação nas organizações. De que maneira poderiam esses profissionais, se é que poderiam, contribuir para a redução ou eliminação da discriminação no âmbito das empresas em que atuam?

Evidentemente, não se pretende aqui responder a todas estas questões, visto que demandariam investigações empíricas mais demoradas e aprofundadas no nível das organizações empresariais31. Esta é, aliás, uma das proposições deste trabalho, parecendo-nos indiscutível a importância de tais investigações, particularmente no âmbito das empresas, a partir do enfoque do planejamento e do desenvolvimento de seus recursos humanos.

Sabe-se que como “qualquer produto da ação humana, as políticas de recursos humanos não emergem exclusivamente da vontade e da capacidade de escolha dos homens que as formulam explicitamente ou mesmo sem formalizá-las colocam-nas concretamente em prática. Há um conjunto de fatores históricos, estruturais e conjunturais que orientam não apenas a percepção desses homens enquanto indivíduos como também o comportamento manifesto deles e dos demais agentes sociais envolvidos na relação”32.

Parece lógico supor – e a prática o confirma – que o profissional de recursos humanos não detém o poder de decisão final sobre a contratação deste ou daquele trabalhador para ocupar posições na estrutura ocupacional da empresa. Sem dúvida, o empregador ou aqueles que o representam mais diretamente, como por exemplo, o gerente, o supervisor ou o chefe, é que são na maioria das vezes os decisores mais ativos. É o empregador “quem interpreta ou concorda unilateralmente com as outras fontes de discriminação por causa de sua preocupação com o lucro”33. Também não se pode esquecer o consumidor ou cliente que, dependendo do tipo de negócio, é decisivo neste processo. I. Chiavenato escreve que na empresa, “o órgão de seleção (staff) não pode impor ao órgão requisitante a aceitação de candidatos aprovados no processo de comparação. Pode apenas” prestar o serviço especializado, aplicar técnicas de seleção e recomendar aquele candidato que julgar mais adequado ao cargo. A decisão final de aceitar ou rejeitar o candidato é sempre de responsabilidade do órgão requisitante. Assim, a seleção é responsabilidade de linha (de cada chefe) e função de staff (prestação de serviço pelo órgão especializado)”34.

Contudo, embora ocupem na estrutura empresarial e organizacional a posição de órgãos prestadores de serviços, os departamentos de recursos humanos, assim como os profissionais que ali atuam, podem e, segundo nosso ponto de vista, devem ter um papel ativo no combate ao racismo e ao preconceito de cor que se reproduz no nível das empresas.

São esses profissionais e departamentos os principais responsáveis por pensar e assumir atitudes proativas frente ao planejamento e desenvolvimento dos recursos humanos das empresas, propondo políticas e diretrizes que assegurem a igualdade de oportunidades, baseada no mérito e na competência profissional.

É lógico que para isso muita coisa precisaria ser mudada, para que os planejadores de recursos humanos incluíssem a raça e as características étnicas dos empregados das organizações onde militam profissionalmente com um dos indicadores e critérios de planejamento. É sabido que, nas poucas empresas que utilizam o planejamento de RH como instrumento de desenvolvimento, fatores como sexo, idade, nível de instrução etc. são importantes.

Contudo, o mito da democracia racial, o preconceito de ter preconceito e a forma mascarada de lidar com a questão racial em nosso país atuam no sentido de impedir que os fatores étnicos e raciais sejam incluídos nas discussões e pesquisas sobre pessoal.

Por outro lado, os sindicatos, os trabalhadores não brancos e o próprio movimento negro parecem não ter encontrado ainda os meios e estratégias mais adequados, no sentido de pressionarem as áreas de RH, pelo menos das grandes empresas, a adotarem políticas que enfatizem a necessidade de se desenvolverem e prepararem os profissionais negros para assumirem, em pé de igualdade com seus colegas brancos, qualquer posto na hierarquia empresarial, sem a necessidade de serem super-homens.

Na verdade, como todos nós sabemos, nos meios sindicais prolifera a mesma idéia, comum em certos meios políticos brasileiros, segundo a qual o racismo e o preconceito não passam de reflexos epifenomênicos da estrutura econômica e de classes. Acredita-se que, resolvendo-se o problema econômico geral dos trabalhadores brasileiros explorados, se resolva automaticamente o problema do racismo.

Entretanto, esse pensamento reducionista esquece-se de que o problema do racismo não é apenas econômico: “O preconceito racial não é atingido apenas por uma expansão de recursos sociais (emprego, educação etc.) em favor do negro, mas principalmente por processos semióticos (isto é, geradores de significações) capazes de bloquear os mecanismos de internalizações de imagens desfavoráveis ao negro tanto por parte dos brancos quanto das próprias pessoas de cor. Tais processos podem ser encontrados na cultura negra atuante na formação social brasileira.”35

Nosso ponto de vista é que as profundas contradições instaladas no seio das sociedades capitalistas constituem sério obstáculo à solução da questão racial em seus quadros. Por outro lado, é importante também, até que uma nova ordem mais justa seja inaugurada, que movimento negro e profissionais de recursos humanos se articulem no combate ao racismo e à discriminação no mercado de trabalho: “Em face da revolução dos direitos civis, a indústria e o comércio têm reformulado sua política de emprego, contratando negros para escritórios e outros setores ocupacionais que raramente ocupavam antes. Muitas companhias de âmbito nacional com sede em Nova Iorque têm proclamado novas políticas de não discriminação ou, pelo menos, reafirmado as antigas. Os encarregados de administração de pessoal estão reformulando seus métodos de seleção, consultando os líderes negros sobre como encontrar e atrair os trabalhadores negros mais bem qualificados.”36

Uma nova postura dos administradores de pessoal deve fazer-se sentir não apenas nas empresas do setor privado mas também e principalmente nas do setor público, onde não se justifica em hipótese alguma a discriminação de negros para os cargos de melhor remuneração, maior prestígio e status. Além da simples observação, trabalhos de pesquisas já mostram claramente que, mesmo nas empresas e órgãos do governo, o racismo e a discriminação racial são um fato. Infelizmente, a afirmação do jornalista e ex-chefe de missão diplomática, Raimundo de Souza Dantas, de que “o melhor caminho vara os brasileiros negros será ingressar nas empresas para-estatais, pois elas não recrutam na base da aparência”37, ainda necessita de retoques importantes, quando se vê o que realmente acontece no interior das mesmas.

De qualquer modo, mesmo sabendo, por experiência própria, das dificuldades com as quais lidam os profissionais da área de recursos humanos para levar a cabo aspectos mínimos de sua função, a sua contribuição e sensibilidade serão de grande valia para se vencerem o racismo e a discriminação no mercado de trabalho. Para que isto ocorra, porém, a exemplo de outras lutas e conquistas, é preciso que trabalhadores negros e brancos, no exercício pleno de sua cidadania, exerçam seu poder de pressão, no sentido de obter o reconhecimento de seus direitos.

Como não é nosso objetivo esgotar o tema, apresentamos a seguir algumas propostas e sugestões que, segundo nosso ponto de vista, poderiam ser utilizadas para auxiliar no combate à discriminação racial nas empresas brasileiras.

 O profissional de RH deve admitir que vive numa sociedade que, embora se considerando homogênea e racialmente democrática, é, na prática, desigual e racista. Mesmo que não se considere racista, é preciso que o profissional verifique se não está praticando o racismo ao contrário, isto é, achar que está fazendo um “favor” ao trabalhador negro não o considerando como negro. Esta história de dizer que tem amigos negros, que “tem um pé na senzala” etc. apenas contribui para reforçar a estrutura de exclusão, na medida em que esta atitude paternalista não é substituída por formas concretas e efetivas de lutar contra o preconceito e a discriminação.

 Quando surgirem vagas nas empresas, anotar a proporção de candidatos negros e brancos que se apresentam, a proporção de recusas quando encaminhados para as diversas áreas da empresa e os motivos da mesma.

 As fichas de identificação dos empregados nos departamentos de pessoal devem conter dados sobre a cor com a qual o empregado se identifica, isto facilitará a análise da carreira de empregados brancos e negros na organização. Destas fichas já consta, por exemplo, o sexo dos trabalhadores e nem por isto ninguém é acusado de sexista. O IBGE, órgão do governo, indaga as pessoas sobre sua cor por ocasião do Censo e das PNADs e nem por isto está praticando racismo. Pelo contrário, tais dados coletados no nível das empresas nos parecem ser de grande valia para justamente se vencer o racismo dentro delas.

 Instrumentos organizacionais, tais como avaliação do desempenho individual, identificação ou análise de potencial, pesquisas de clima organizacional etc. devem ser utilizados como meios de análise e definição de políticas que valorizem a capacidade de trabalhadores negros tanto quanto de trabalhadores brancos.

 Técnicas de treinamento, desenvolvimento de equipe, desenvolvimento de pessoal etc. devem ser utilizadas para preparar empregados negros e brancos para assumirem posições na hierarquia funcional em igualdade de condições. Por que todas essas técnicas são úteis para preparar e desenvolver executivos brancos e não são úteis para preparar e desenvolver executivos negros?

 Procurar identificar, levando em consideração critérios étnicos, as queixas, idiossincrasias, problemas de saúde, problemas emocionais etc. advindos dos empregados não brancos. As formas como se apresentam o racismo e o preconceito em nossa sociedade podem também mascarar os seus efeitos, apresentando-os como comuns aos trabalhadores em geral. Pode ser, mas é bom ter certeza. Quantos trabalhadores são considerados desequilibrados emocionalmente, por exemplo, quando na verdade é esta a única forma que encontram para lutar contra o racismo praticado em seu setor de trabalho?

Em suma, as diversas questões aqui apresentadas, estamos certos, necessitam de mais discussão e reflexão. A articulação do movimento negro com os sindicatos e profissionais de recursos humanos parece-nos um passo importante na luta contra a discriminação de trabalhadores negros no mercado de trabalho e no interior das empresas. Por outro lado, o desenvolvimento de pesquisa empírica sobre os processos de discriminação nas organizações empresariais parece-nos ser fundamental na identificação desses mecanismos. Como atuam e em que momento são mais fortes? Acredita-se ainda que, embora existindo outros agentes importantes no processo de discriminação, os profissionais de recursos humanos, desenvolvendo sua sensibilidade profissional e política para com as formas assumidas pelo preconceito racial em nosso país, poderão dar uma valiosa contribuição na luta contra o racismo presente no mercado de trabalho. 

 

 

Documento apresentado ao VII Congresso Nacional de Sociólogos, Salvador, Bahia, de 24 a 27 de maio de 1988.
1. FISCHER, Rosa Maria. “Pondo os Pingos nos Is’ Sobre as Relações de Trabalho e Políticas de Administração de Recursos Humanos” in FISCHER, R.M. e FLEURY, M.T.L. (Coords.) Processo e Relações do Trabalho no Brasil, Sâo Paulo, Atlas, 1985:
2. Idem, ibidem, p. 29.
3. FERNANDES, Florestan. A Integração do Negro na Sociedade de Classes. São Paulo, Ática, 3ª ed., vol. 2, 1978, pp. 153-154.         [ Links ]
4. Idem, ibidem, idem.
5. SOUZA, Neuza Santos. Tornar-se Negro. Rio de Janeiro, Graal, 1983.         [ Links ]
6. FERNANDES, Florestan, op. cit.
7. Sobre o significado da expressão “americanismo”, ver GRAMSCI, A. Maquiavel, a Política e o Estado Moderno.Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 3ª ed., 1978, pp. 375-413.         [ Links ]
8. BERTERO, Carlos O. “A Função de Recursos Humanos na Empresa Brasileira” in Revista Contexto, São Paulo Hucitec, nº 4, 1979; e RICCO, A. & SILVEIRA, Sebastião G. “Perspectivas para uma nova administração de recursos humanos” in Novo Emprego – Jornal de Recursos Humanos, São Paulo, nº 26, Dezembro, 1987, pp. 5-6
9. MONTEIRO, Jorge Aparecido. “Avaliação de Desempenho Humano na Empresa: ideologia e política” in Revista Recursos Humanos e Sociedade, São Paulo, Cortez, nº 1, ano I, julho, 1986.
10. MANTEGA, Guido e MORAES, Maria. Tendências Recentes do Capitalismo Brasileiro. Trabalho apresentado na 30ª Reunião Anual da SBPC, julho, 1978.         [ Links ]
11. FERNANDES, Florestan, Op. cit.
12. FISCHER, Rosa Maria. Op. cit., p. 31
13. Idem, ibidem, idem. (grifos nossos)
14. Idem, ibidem, pp. 37-38.
15. SEMLER, Ricardo F. “Repensando o Futuro da Administração Salarial no Brasil” in Revista Recursos Humanos e Sociedade, São Paulo, Cortez, ano I, julho, 1986, p. 107.
16. MONTMOLLIN, Maurice. A Psicotécnica na Berlinda. Rio de Janeiro, Agir, 1974, p. 138.         [ Links ]
17. Idem, ibidem, idem.
18. TORT, Michel. Le Quocient Intellectuel. Paris, Maspero, 1977.         [ Links ]
19. BRAVERMAN, H. Trabalho e Capital Monopolista. Rio de Janeiro, Zahar, 1977.         [ Links ]
20. ROUX, Jorge. Recursos Humanos e Treinamento. São Paulo, Brasiliense, 1983.         [ Links ]
21. TRAGTEMBERG, Maurício. Administração, Poder e Ideologia. São Paulo, Moraes, 1980.         [ Links ]
22. “As relações de trabalho são uma das formas de relacionamento social e, por isso, expressam as características da sociedade mais ampla”, FISCHER, Rosa Maria, op. cit., p. 20.
23. HASENBALG, Carlos A. Discriminação e Desigualdades Raciais no Brasil. Rio de Janeiro, Graal, 1979, p. 80.         [ Links ]
24. IANNI, Octávio. Escravidão e Racismo. São Paulo, Hucitec, 1978, p. 80.         [ Links ]
25. “SALÁRIO de Negro é menor do que o do Branco em São Paulo”, jornal do Brasil, 06.11.85, 1º Caderno, p. 17         [ Links ]
26. PORCARO, Rosa M.; OLIVEIRA, Lúcia E. C. & ARAÚJO, Tereza C. N. O Lugar do Negro na Força de Trabalho. Rio de Janeiro, IBGE, 1985, p.49.         [ Links ]
27. “SALÁRIO de Negro é Menor do que o do Branco em São Paulo”. Op. cit.
28. “EMPRESAS Desafiam a Lei e Negam Emprego aos Negros”, jornal do Brasil, 19.12.72         [ Links ]
29. “DISCRIMINAÇÃO Racial Dificulta Emprego”. jornal do Brasil, 03.11.68         [ Links ]
30. ARAÚJO, Tereza C. N. “Uma História de Discriminação Racial” in Ciência Hoje, Rio de Janeiro, nº 28, Suplemento vol. 5, jan./fev., 1985, pp. 18-19.
31. Uma tentativa neste sentido pode ser encontrada em: MONTEIRO, Jorge Aparecido, “Cor e Trabalho na Empresa Pública: uma introdução” in Série Estudos, Rio de Janeiro, IUPERJ, nº 56, abril, 1987.
32. FISCHER, Rosa Maria, Op. cit., p. 34.
33. FRANKLIN, R.S. & RESNIK, S. The Political Economy of Racism. New York, Holt Rinehart e Winston, 1973 apud HASENBALG, Carlos A., op. cit., p. 82.
34. CHIAVENATO, Idalberto. Administração de Recursos Humanos. São Paulo, Atlas, vol. 2, 1979, p. 85. (3 vols.         [ Links ])
35. SODRÉ, Muniz. “O Negro e os Meios de Informação” in Revista de Cultura, Vozes, Petrópolis, ano 73, vol. LXXIII, nº 3, abril, 1979, p. 42.
36. BARAN, Paul A. & SWEEZY, Paul M. Capitalismo Monopolista. Rio de Janeiro, Zahar, 3ª ed. 1978, p. 273. (grifos nossos)         [ Links ]
37. BOJUNGA, Claúdio. “O Brasileiro Negro, 90 Anos Depois” in Revista Encontros com a Civ. Brasileira, Rio de Janeiro, nº 1, 1978, p. 187.

Jorge Aparecido Monteiro 

Sociólogo e Assessor Técnico no Departamento de Desenvolvimento de Pessoal de empresa nacional de grande porte do Rio de Janeiro

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