“Songs in the Key of Life” considerado o melhor disco de Stevie Wonder completa 40 anos

Demorou dois anos a ser completado e fechou o ciclo mais criativo na carreira de Stevie Wonder. “Songs in the Key of Life” faz 40 anos. Mas podia nem ter chegado a ver a luz do dia.

por João Candido da Silva no Observador

Na discografia de Stevie Wonder, existe um “antes” e um “depois” de Songs in the Key of Life. O álbum duplo, acrescentado de um extended play com quatro canções, lançado há 40 anos, a 28 de setembro de 1976, e esteve para não ver a luz do dia. Em meados dos anos 1970, o músico estava desencantado com a situação política e social nos Estados Unidos. E procurava encontrar condições de trabalho que lhe permitissem desenvolver e concretizar as suas ideias sem restrições.

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Stevie Wonder ponderava seriamente abandonar a carreira que lhe tinha proporcionado fama global e fixar-se no Gana, em África, onde planeava cuidar de crianças deficientes. Atravessava um período de auge criativo e desfrutava do devido reconhecimento. Ganhar “Grammys” tornou-se quase uma rotina, ao ponto de, em 1976, Paul Simon, ao receber o prémio de álbum do ano pelo lançamento de Still Crazy After All These Years, ter agradecido o facto de Wonder não ter editado qualquer disco que estivesse em condições de disputar o prémio. Wonder estava disponível, quanto muito, para fazer um concerto de despedida. Ponto final.

Berry Gordy é que não estava pelos ajustes. Nem sempre a relação com Stevie Wonder tinha sido fácil, mas o fundador e líder da Motown Records não tinha qualquer vontade de perder um dos músicos mais importantes no catálogo da editora. Argumentou que Wonder faria um disparate se decidisse virar as costas a uma carreira de enorme sucesso, construída a partir de 1962 quando, com apenas 12 anos e o estatuto de menino-prodígio, tinha gravado e lançado o primeiro álbum da sua discografia, The Jazz Soul of Little Stevie.

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Berry Gordy, o fundador da Motown que, em 1975, fechou o contrato mais caro, à época, na história da indústria musical. (Fotografia Anthony Harvey/Getty Images)

O multi-instrumentista que, pelo final da infância, já dominava os segredos do piano, da harmónica e da bateria, não terá sido fácil de convencer. Antes de completar os quatros discos que, entre 1972 e 1974, lhe garantiram um lugar sólido na lista de músicos incontornáveis na história da soul, do rythm’n’blues e da pop — Music of My MindTalking BookInnervisions e Fulfillingness’ First Finale –, Stevie Wonder já tinha conquistado autonomia e liberdade na condução do seu trabalho. Queria dedicar-se a gravar álbuns e não perdia oportunidades para sacudir a pressão exercida por Gordy, que lhe pedia para se concentrar da edição de hit singles, o grande pilar do sucesso da Motown durante os anos 1960.

Com aqueles quatro álbuns, Wonder conseguira provar ter escolhido o caminho certo para dar largas ao seu potencial criativo e ao talento para compor, tocar e cantar. Entre a concessão de total liberdade ao músico para fazer aquilo que entendesse e a perspetiva de perder uma das principais fontes de prestígio e de receitas da Motown, Berry Gordy avançou com o argumento decisivo. Para desfazer as hesitações de Stevie Wonder, propôs, em agosto de 1975, a assinatura de um contrato generoso. O músico receberia 37 milhões de dólares, o equivalente a 164 milhões atualmente, com o compromisso de gravar sete álbuns. Na época, a indústria da música nunca tinha ouvido falar em acordos que envolvessem somas desta envergadura.

Stevie Wonder não se fez rogado. Aceitou a oferta e embrenhou-se na criação, que já tinha iniciado, da obra que iria culminar a fase mais importante da carreira, aquela em que legou clássicos como “Superstition”, “Higher Ground”, “Living in the City” ou “You Are the Sunshine of My Life”. As tarefas dividiram-se entre três estúdios: Hit Factory, em Nova Iorque, e Record Plant, em Los Angeles, com algumas sessões a decorrerem no Crystal Sound, em Sausalito, na região de São Francisco.

[“I Wish” e “Isn’t She Lovely”, ao vivo em Londres em 2009]

O objetivo do novo álbum era o de testemunhar as experiências de vida de Stevie Wonder. Durante as gravações, o título provisório foi “Let’s See Life the Way it Is”. As letras retomavam temas que já tinham estado presentes em obras anteriores, com destaque para as relações raciais, religião, amor ou a pobreza, mas, também, situações da órbita pessoal como a paternidade, que Stevie Wonder tinha experimentado pela primeira vez a 2 de fevereiro de 1975 quando nasceu a filha Aisha.

Como não pretendia entregar a ninguém o controlo sobre a gravação do novo álbum, Wonder assumiu as responsabilidades da produção e “limitou-se” a recrutar dois engenheiros de som, Gary Olazabal e John Fischbach. Quantos aos músicos, os registos garantem que estiveram envolvidos 130, apesar de muito do trabalho ter sido garantido pelo próprio Stevie Wonder. Vedetas do jazz, como o pianista Herbie Hancock e o guitarrista George Benson, participaram nas sessões de gravação. O perfeccionismo do líder não quis deixar nada ao acaso e, com a edição do álbum agendada para outubro de 1975, Stevie Wonder exigiu mais tempo para a fase das misturas finais.

Conta-se que a quantidade de canções era hercúlea. Superior a duas centenas. Na versão final de “Songs in the Key of Life” acabaram por figurar 21 temas que refletem as diferentes referências que serviram de ponto de partida para erguer a personalidade musical de Stevie Wonder.

[“As”, outro dos temas do álbum]

A homenagem aos pioneiros do jazz, simbolizados por Duke Ellington, é o mote de “Sir Duke”, uma celebração cheia de alegria exteriorizada pelos instrumentos de sopro que evocam a era das big bands. “I Wish”, outro dos pontos altos do álbum, recorda, com nostalgia, os tempos de infância e de adolescência de Stevie Wonder, que, na bateria, impõe uma toada funky irresistível. “Contusion”, uma faixa instrumental, percorre os terrenos da fusão entre rock e jazz, que, pela mão de Miles Davis, marcou um período de reinvenção da música improvisada entre o final dos anos 1960 e a década seguinte. Mas há mais.

“Isn’t She Lovely” é a homenagem de Stevie Wonder a Aisha, numa canção em que o músico demonstra porque é considerado um executante de harmónica tecnicamente irrepreensível e dotado de um sentido melódico refinado. O tema que abre o álbum, “Love’s in Need of Love Today”, passa pelo gospel, e as reflexões de Wonder vão saltando das questões raciais, como sucede em “Black Man” ou “Village Ghetto Land”, para a religião, em “Have a Talk With God”, a política, em “Pastime Paradise”, ou, simplesmente, o estado de paixão, com “If It’s Magic”.

Para a História, ficou um álbum que encerra com chave de ouro o ciclo mais rico da carreira de Stevie Wonder. Depois de Songs in the Key of Life, nada no seu percurso conseguiu ser tão brilhante e o músico até se perdeu em propostas que podem ser classificadas ao nível da mera banalidade, como sucedeu com o estrondoso êxito de “I Just Called to Say I Love You” durante os anos 1980. Um tema que está longe de honrar canções sublimes de amor editadas em tempos anteriores como “All in Love is Fair” ou “Knocks Me Off My Feet”. Quer isto dizer que o disco que agora faz 40 anos está isento de defeitos? Nem por isso.

Uma das questões intrigantes acerca de Songs in the Key of Life está no facto de algumas das faixas serem estendidas até à exaustão. “Isn’t She Lovely” e “Black Man” são dois exemplos de temas que ganhariam se tivessem sido editados com o objetivo de os tornar mais curtos. Muito antes de chegarem ao fim, já perderam o interesse e desfizeram a expectativa de alguma mudança de rumo que provoque surpresa e renove o interesse de quem escuta. A questão torna-se mais difícil de entender quando testemunhas que participaram nas sessões de gravação afirmam que a escassez de material não era um problema. Pelo contrário.

[“Gangsta’s Paradise”, de Coolio, tema em que se podem escutar samples de “Pastime Paradise”, de Stevie Wonder]

Os grandes álbuns da História da música popular, mas não só, refletem os gostos de uma época e os recursos que estavam disponíveis quando foram gravados. Stevie Wonder gostava de ser o primeiro a experimentar instrumentos novos e, nos anos 1970, a eletrónica estava pronta a satisfazê-lo. Para o bem e para o mal. “Village Ghetto Land” tem um sintetizador polifónico no lugar dos arranjos de cordas, mas foi esse mesmo Yamaha GX1 que criou o popular tema “Pastime Paradise”, a base de “Gangsta’s Paradise”, de Coolio. Em contraste, no tema “If It’s Magic” aquilo que se ouve é uma harpa — das verdadeiras.

Arranjos à parte, ficam as canções. E, nesta matéria, “Songs in the Key of Life” é um dos melhores e mais influentes álbuns de sempre. Uma fonte de inspiração para estrelas da pop como Elton John, Michael Jackson e Prince, um disco que demorou dois anos a ser finalizado, ao ponto de os colaboradores da Motown terem mandado imprimir T-shirts em que se podia ler: “We’re almost finished” [Estamos quase a terminar”].

[Recorde, aqui, as 21 faixas de “Songs in the Key of Life”]

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