Sonhos negados: violência faz mulheres negras desistirem da maternidade

Enviado por / FontePor Clarissa Levy, do TAB

“Sempre foi meu sonho ser mãe. Falava que queria ter quatro filhos, ter uma casa cheia, sabe?” Mariana Evaristo vive um conflito. A advogada mineira de 32 anos desistiu da maternidade por medo do que poderia acontecer. “Todo santo dia eu penso na violência que esse filho sofreria.”

Joseane Damasceno, assistente social cearense de 32 anos, passa pela mesma situação. “Aqui onde moro não tem um mês em que um jovem não é assassinado. Tenho muito, muito medo da realidade de genocídio em que vivemos.”

A carioca Buba Aguiar, patologista e socióloga de 27 anos, e Ana Luiza Guimarães, socióloga que vive em uma periferia no entorno de Brasília, amargam aflição igual. “Dá desespero de colocar o filho no mundo para perder para o Estado numa operação ou numa abordagem policial”, diz a primeira.

Mariana, Joseane, Buba e Ana Luiza são mulheres negras, que conversaram com o TAB sobre como a violência urbana e policial as forçou a repensar a decisão de ter filhos. A cada dia, sentem que há menos chance de concretizarem seus planos de constituir família.

O temor não ocorre apenas entre mulheres negras. Homens negros também se questionam e refletem sobre a dura missão da paternidade em países racistas. Em 2015, o escritor norte-americano Ta-Nehisi Coates publicou “Entre o mundo e eu”, relato em primeira pessoa dedicado a seu filho de 15 anos. A ideia do livro surgiu depois de uma tragédia: o assassinato de um conhecido de Coates pela polícia, confundido com um bandido de pele negra.

O temor não ocorre apenas entre mulheres negras. Homens negros também se questionam e refletem sobre a dura missão da paternidade em países racistas. Em 2015, o escritor norte-americano Ta-Nehisi Coates publicou “Entre o mundo e eu”, relato em primeira pessoa dedicado a seu filho de 15 anos. A ideia do livro surgiu depois de uma tragédia: o assassinato de um conhecido de Coates pela polícia, confundido com um bandido de pele negra.

Coates, que é jornalista e escritor, teve uma infância difícil. Como a maior parte dos negros dos EUA, perdeu parentes e amigos para a violência e não conseguiu completar a faculdade. “Senti que estava entre os sobreviventes de algum grande desastre natural”, escreveu, em techo lembrado por um texto publicado no caderno Ilustrada da Folha de S.Paulo.

Há uma diferença importante no caso das mulheres negras; para elas, adiar a maternidade só é possível até certo ponto. Pesa sobre as mulheres a necessidade de entender um filho como um projeto com data-limite, já que a fertilidade feminina cai, conforme a idade. A pressão social também dói.

Estado que mata

Apesar de morarem em estados diferentes, as quatro mulheres ouvidas por TAB vivem no Brasil, lugar onde a morte de jovens é uma realidade naturalizada. Todos os dias, ao menos 32 crianças ou adolescentes brasileiros são assassinados, segundo dados do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) Crianças são baleadas dentro de suas casas. Em escolas enquanto assistem às aulas. Ou no caminho de uma padaria onde comprariam um lanche.

Em 2019, Kettellen Umbelino de Oliveira morreu baleada enquanto passeava de bicicleta com a mãe no Rio de Janeiro. A menina tinha cinco anos de idade. Duas semanas depois, morreu Ágatha Félix, de oito anos, atingida por uma bala enquanto andava de carro com a família também na capital carioca. Não foram as únicas. Na região metropolitana do Rio, ao menos 25 crianças foram baleadas em 2019: quatro foram atingidas dentro de suas casas, oito enquanto caminhavam para a escola. Ao todo, sete morreram.

A socióloga Ana Luiza Guimarães, de Brasília (Foto: Arquivo pessoal)

Em 2020, a morte violenta de crianças e adolescentes segue ocorrendo nas periferias de todo o Brasil. Em maio, um tiro de fuzil atingiu João Pedro Mattos Pinto nas costas e matou o menino de 14 anos, logo depois de ele mandar uma mensagem para a mãe dizendo “estou dentro de casa, calma”. O assassinato causou comoção em todo o País, mas pouca gente soube que, oito dias antes uma outra criança morreu depois de ser baleada enquanto brincava na calçada de sua casa, em Fortaleza. Maria Vitória Sousa da Silva tinha três anos de idade.

No Ceará, 69 crianças e adolescentes foram mortos, somente durante a quarentena. Segundo dados da Secretaria de Segurança Pública do estado, entre 20 de março e 27 de maio houve um aumento de 165% nas mortes de crianças e adolescentes, em comparação com o mesmo período de 2019. Fortaleza é uma das cidades com o quadro mais assustador: na última década, o número de mortos vem crescendo e a idade das vítimas, diminuindo.

Contexto que pesa

Joseane vive em uma zona empobrecida da capital cearense. Sua comunidade, encravada entre dois bairros nobres, tem uma realidade parecida com a de outras periferias Brasil afora: altos índices de violência e baixos índices educacionais. Na Serviluz vivem cerca de 21 mil pessoas, mas a comunidade não tem escola para estudantes do Ensino Médio. O único posto de saúde é desestruturado, sendo comum faltarem médicos.

A assistente social Joseane Damasceno, do Ceará (Foto: Arquivo Pessoal)

“O Estado não chega aqui com uma escola, com um serviço de saúde, é tudo muito largado”, diz ela. O cenário de abandono onde vive é uma das razões que a impede de querer ter filhos, mas não só. O principal motivo que fez a assistente social repensar a maternidade é a violência. “Entre as mulheres a gente fala demais sobre esse medo: o medo de ter um filho e de como vai ser quando ele sair de casa. E se for um menino, preto, que é considerado alvo?”

Segundo dados do Unicef, o número de homicídios de adolescentes do sexo masculino no Brasil é maior, inclusive, do que em países afetados por conflitos, como Síria e Iraque. Em 2015, 11.403 adolescentes de 10 a 19 anos foram assassinados no Brasil, dos quais 10.480 eram meninos. Segundo o Atlas da Violência de 2019, os assassinatos atingiram o patamar recorde em 2017, período no qual 75,5% das pessoas mortas eram negras.

Em seu bairro e no trabalho, Joseane acompanha muitos jovens que estão na linha de frente do tráfico, e já viu muitos morrerem. “É sempre uma dor muito grande. É como um pedaço de mim que morre, porque eu me vejo muito na história dos meus”, lamenta.

Mariana Evaristo vive em um bairro de classe média em Belo Horizonte e tem estrutura financeira estável. Mesmo assim, não consegue realizar o sonho de ter uma casa cheia de crianças. Quando vê um jovem ser assassinado, sente a dor e se indaga se colocar mais uma criança negra no mundo é um ato de amor. Ela tem medo de não conseguir proteger um filho negro.

Ingrid Farias, que vive em uma comunidade periférica do Recife, sofre do mesmo receio. Ela é mãe de Leon, um menino negro de sete anos. Ela conta que a cada dia teme mais pela segurança de seu filho que, ao crescer, vai perdendo a “imagem de inocência” das crianças. Ingrid analisa que os corpos negros vivem um processo de desumanização. “O racismo desumaniza o ser humano para que a morte, a agressão, o assassinato, tudo que é vivido pela pessoa negra gere menos comoção.”

Mônica Cunha é coordenadora da Comissão de Direitos Humanos da Alerj (Foto: Arquivo pessoal)

Mônica Cunha, que é coordenadora da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, conta que a naturalidade com que jovens são mortos impõe um cotidiano de dor nas periferias. “As mulheres vendo isso falam: ‘eu não vou ter filho. Ou morre ou vai preso’.”

A maternidade na psicologia

“A escravidão foi ontem, né. E a escravidão fala sobre a nossa família.” Lucineia Marques, psicóloga especialista em psicologia clínica que trabalha com relações raciais e maternidade, explica que todas as pessoas carregam traumas transgeracionais. São memórias, sentimentos e padrões inconscientes, passados de geração para geração. A especialista conta que não é raro suas pacientes trazerem histórias relacionadas ao bisavô ou a bisavó que viveu o cotidiano da escravidão. As marcas e traumas aparecem no consultório quando as mulheres falam sobre maternidade.

“Foram 300 anos de escravidão, e isso significa mulheres sendo estupradas, 300 anos de mulheres gestando, sem poder exercer a maternidade”, aponta. Além das memórias históricas, aparecem no consultório as vivências mais recentes.

Marques conta que é comum as mulheres lembrarem das experiências de discriminação na escola, dos sentimentos de baixa autoestima, dos xingamentos e violências racistas quando pensam sobre gravidez. “Mães de meninas temem a exclusão, a rejeição e a solidão. Para mães de meninos, o maior medo é sempre ser morto pela polícia”, aponta.

A psicóloga perinatal Maiumi Souza, que trabalha com maternidade negra e atende em Salvador, também conversou com TAB. Ela percebe no dia a dia que, quando as mulheres pensam na gravidez, se lembram das situações vividas por suas mães e avós, observando a história de maternidade das suas famílias. Frequentemente deparam com casos de violência obstétrica, negligência nos atendimentos de saúde e falta de suporte dos companheiros.

O levantamento sobre violência obstétrica figura na pequena lista de estudos que abordam a saúde da mulher negra relacionada à maternidade. No Brasil, ainda há poucas pesquisas que se aprofundam nos processos psicológicos de mães não brancas.

Para Marques, a pequena quantidade de pesquisas sobre os processos psicológicos da maternidade negra tem a ver com o passado elitizado da psicologia. “A psicologia é fundada na elite, então as pessoas negras não chegavam à clínica. O que é muito surreal: num lugar onde maioria das pessoas é negra, como não se estuda isso?”

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