‘Sou um ato político’, diz 1ª passista plus size da Mocidade Alegre

Em entrevista à Catraca Livre, Joyce Carolina relata situações de machismo e gordofobia que viveu no Carnaval

Por Heloisa Aun, Do Catraca Livre

Joyce Carolina - mulher negra, de cabelo longo e ondulado, usando colar de pedras vermelhas- em pé
Joyce Carolina nasceu inserida na realidade do Carnaval (Foto: Arquivo Pessoal)

Joyce Carolina, de 29 anos, nasceu inserida no mundo do samba. Mais precisamente, já era do Carnaval desde quando estava na barriga de sua mãe. A atriz, cantora, bailarina e modelo se tornou a primeira passista plus size a desfilar na escola Mocidade Alegre, localizada no bairro do Limão, zona norte de São Paulo, onde ela também reside. Na infância, frequentava o local por influência de toda a família. Desfilou pela primeira vez aos 17 anos, contrariando todos os padrões esperados pela sociedade para uma mulher gorda.

Segundo Joyce, sua família tem raízes no Carnaval. “Minha avó era da época de fundação da escola Mocidade Alegre. Eu me lembro pequena indo na quadra com ela, mas não chegava a desfilar”, conta, em entrevista à Catraca Livre. Mas, aos 17, pediu a sua mãe e entrou na escolinha de tamborim da bateria. “Ela tinha medo que eu desfilasse porque era meio perigoso o Carnaval na época. Nessa de aprender a tocar, mudei para chocalho, e, quando fui ver, estava desfilando. E levei a família inteira!”, diz.

Como primeira passista plus size de sua escola — presidida por uma mulher, Solange Cruz —, a atriz se considera um “ato político”, e não só no Carnaval, mas na vida. “Eu sou um ato político (…). Primeiro, porque sou negra; segundo, porque sou mulher, e, terceiro, porque sou uma mulher gorda”, enfatiza.

“No Carnaval em si, sou um ato político porque acho que é uma festa para todos. Todo mundo fala, mas limitam isso. Então, tem muito preconceito. Por que não há uma rainha de bateria gorda? Por que a mulher à frente da bateria tem que ser sempre a com ‘corpão’ malhado? Se ela for muito magra, vão falar. Se ela for gorda, também vão falar”, completa.

Joyce relata situações de machismo e gordofobia que viu ou presenciou no meio das escolas de samba. “A gente vê algumas pessoas rindo, outras que acham um absurdo uma mulher gorda com a roupa curta. ‘Que que essa mulher tá fazendo aí?’ e ‘Como deixaram ela fazer isso?’” são alguns dos questionamentos que fazem. O que eu tento é quebrar esses pensamentos de outras maneiras.”

Abaixo, confira a entrevista na íntegra com Joyce Carolina:

Catraca Livre: Quais situações de machismo você já enfrentou no meio do samba?

Joyce Carolina — Tem várias situações. O machismo está se desconstruindo, principalmente por conta das redes sociais, que estão deixando a galera mais informada sobre seus direitos e dando mais voz.

Já fui de bateria de escola de samba, onde só tem homem. Na Mocidade nunca teve isso, mas conheço várias baterias que só agora estão entrando mulheres.

“Mulher só pode tocar chocalho. Não pode tocar surdo, caixa, repenique, porque mulher não sabe tocar”: as frases representam coisas naturais de se dizer. Eu já presenciei muito essa cena de mulher não poder tocar tal instrumento, principalmente os grandes.

Fora o fato de já ter presenciado histórias de mulheres que foram fazer shows de Carnaval, não na minha escola, mas em outras, e a galera acha que tem o direito de pôr a mão nelas porque estão de biquíni. E não é, né? Posso sair pelada na rua, e a pessoa não tem direito de pôr a mão no meu corpo. É bem complicado.

Na minha escola, a presidente é uma mulher e tudo é regido por mulheres, então é muito difícil que essas coisas aconteçam. Mas, nas outras, sim. Eu já vi diretor de bateria falando: “Onde já se viu mulher tocando surdo? E caixa? Mulher é chocalho ou agogô, no máximo”.

Na minha [escola] não tem esse tipo de coisa porque não pode ter machismo onde a mulher manda. Os maiores detalhes da Mocidade são feitos por mulheres. O Carnaval se ganha no detalhe. Mulher tem um olho mais clínico para se atentar aos detalhes.

Grande cargos da escola são regidos por mulheres. Ela [a presidente] faz questão de ser isso. Tanto que o enredo da nossa escola deste ano fala sobre as yabás, que são as orixás mulheres, e da força da mulher. É a força da mulher dentro da escola.

Confira abaixo:

Além de machismo, você já viveu alguma situação de gordofobia nesse meio? Como é pra você?

Sim, com certeza. Fiquei alguns anos na bateria, depois fui pra ala coreografada e daí por diante comecei a desfilar como passista. A aceitação de quando entrei como passista foi grande, mas existe muito [preconceito], né?

A gente vê algumas pessoas rindo, outras que acham um absurdo uma mulher gorda com a roupa curta. “Que que essa mulher tá fazendo aí?” e “Como deixaram ela fazer isso?” são alguns dos questionamentos que fazem. O que tento é quebrar esses pensamentos de outras maneiras.

Então, eu vou fazer aula e quero estar sempre bem vestida pra não dar motivo. Quando a pessoa questionar: “Que que essa gorda está fazendo aí?”, ela vai olhar e pensar: “Pera, ela tem que estar lá”. Mas não só comigo, como em outras escolas.

Em rodinhas de pessoas do Carnaval, a gente está passando pra dar oi para alguém e eles estão comentando de alguma menina gorda de outras escolas, porque agora tem muitas alas de passistas plus size. Na minha não, só tem eu. Sou a primeira e a única plus size na Mocidade.

E entre as outras passistas, há preconceito? Ou ele vem mais de fora?

A gente sabe que tem algumas que é aquela coisa: falam oi na frente, mas por trás estão falando mal. Então, deixa falar. É uma coisa que veio de cima, quem colocou foi de cima, então deixa falar, paciência.

Mas de fora também tem bastante. A gente vê pessoas torcendo o nariz, às vezes vão na apresentação, e, quando a gente começa a sambar, elas olham com cara de desprezo, apontam, tiram foto… Sei que tem foto minha em grupo de [WhatsApp de] Carnaval rolando.

Antes de me tornar passista, tinha um problema sério de autoestima. Quando fui convidada para entrar como passista da escola, em 2015, o meu maior medo era justamente esse. E foi o contrário. Parece que isso me dá forças para ser melhor. Eu acordo e falo: deixa que vou te mostrar como que faz.

Alguma situação de gordofobia te marcou? Você chegou a reportar isso para a escola?

Não cheguei a reportar para a escola, mas tiveram algumas situações de grupo de WhatsApp. Eu fiquei sabendo e fiquei muito mal, mas muito mal mesmo. É aquela coisa: a gente não fala para não transparecer, mas fiquei muito chateada. Foi justamente aquela coisa de a pessoa ser algo na sua frente, te elogiar, e depois ficar sabendo que ela falou muito mal de você no grupo do aplicativo.

Segundo a passista, meninas mais novas se inspiram nela para sambar (Foto: Arquivo Pessoal)

O que você e o seu corpo representam na escola de samba?

Eu sou um ato político, não só no Carnaval, mas também na vida. Primeiro, porque sou negra; segundo, porque sou mulher, e, terceiro, porque sou uma mulher gorda.

No Carnaval em si, sou um ato político porque acho que é uma festa para todos. Todo mundo fala, mas limitam isso. Então, tem muito preconceito. Por que a mulher à frente da bateria tem que ser sempre a com “corpão” malhado? Se ela for muito magra, vão falar. Se ela for gorda, também vão falar.

Por que não há uma musa plus size numa escola de samba? Por que não tem mulher gorda em comissão de frente? Eu já fui uma vez da comissão de frente, mas é muito raro a gente ver mulheres gordas em lugares de destaque.

Sou um ato político porque, infelizmente, só tem eu. Por que só tem eu na minha escola? Não só na minha, mas poderia ter mais mulheres em outras escolas também. Acho ótima a ideia de ter alas plus size, mas se você quer inserir, por que divide as pessoas? Deveriam ser todas juntas, as passistas da escola.

O sambista tem que saber sambar e ter qualidade, só. Se ele é gordo, magro, baixo, alto, isso não interessa. Uma coisa que eu percebo, até porque o Carnaval mudou a minha vida, é que acabo incentivando outras meninas a também ter coragem. Tem muita gente que deixou de curtir o Carnaval, e gostar do Carnaval, por medo do que vão pensar do corpo, da roupa…

Eu acho que a gente tem que ser feliz. O Carnaval é uma época de alegria e tem que ser para todos: branco, gordo, preto, magro, japonês, índio. Quem quiser curtir o Carnaval que vá, independentemente do corpo, da etnia. E com respeito, né? Não é só estar lá, mas as pessoas merecem ser respeitadas.

Você acha que nos últimos anos alguns padrões têm sido rompidos sobre a figura da mulher no Carnaval?

É pouco ainda, mas está andando, mesmo que a “passo de formiga”. Aos poucos, essas mulheres gordas estão começando a ter espaço porque antes nem abertura para ter uma ala plus size, por exemplo, teria.

Havia um concurso que teve algumas edições, chamado Rainha do Carnaval Plus Size, e não tem mais há anos por falta de verba. Por que as pessoas não querem investir em concursos como este? Aí o concurso da Rainha do Carnaval normal não pode ter plus size. Por que uma mulher gorda não pode estar na corte do Carnaval e receber a chave? Por que a figura gorda dessa corte do Carnaval é só o Rei Momo? E o Rei Momo, se você parar para analisar, até a forma de dançar dele tem que ser meio caricata, senão ele não ganha.

Por que não pode ser uma mulher gorda rainha de Carnaval? Por que não pode ser uma mulher gorda rainha de bateria? Não tem nenhuma rainha de bateria plus size. Por que esse padrão? As escolas precisam desconstruir esse padrão.

Uma coisa que aconteceu muito na mídia, mas ainda não no Carnaval, que é muito retrógrado, é aquela questão de as pessoas quererem consumir um produto se se sentirem representadas. Não existe “vou deixar de curtir o Carnaval porque não me vejo representada em tal lugar”. Tem que começar a ter isso para as escolas passarem a inserir para o bem ou para o mal. As escolas, querendo ou não, vão ter que colocar uma mulher gorda ali.

Por que não tem uma musa plus size em cada escola de samba? Falta isso. E tem muita escola que, se a menina está um pouquinho fora do peso, e nem é uma mulher gorda, não deixam entrar. “Ah, com esse tamanho o que você quer fazer na ala de passistas?” Às vezes a menina samba muito. Eles perdem demais quando fazem isso.

Que tipo de reações você recebe de outras meninas que te veem na escola? Você recebe muitos feedbacks?

Muitos! Todo dia recebo mensagens de alguém falando: “Meu Deus, quando vi você sambando a primeira vez, eu queria ter essa coragem. Você começou a me encorajar!” ou “Achei que não poderia sambar, mas sempre tive vontade”.

Por mais que seja só eu na minha escola, represento outras mulheres e as encorajo. Eu não posso ser menos do que o máximo. Se for menos do que o máximo, vou estar decepcionando elas também. Se eu for o máximo, é uma chance de, de repente, conseguir subir mais uma, depois mais outra, depois mais outra e depois mais outra… Quando a gente olhar, teremos várias outras mulheres!

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