‘Sou um ser humano, não só um hímen’: mulheres relatam como noite de núpcias arruinou seus casamentos

Casamento é um assunto que desperta interesse em todo o mundo, mas para as mulheres a noite de núpcias pode se tornar inesquecível – pelas razões erradas.

Por Hevar Hasan, do BBC

Getty Images

Em vários países árabes e muçulmanos, espera-se que as mulheres sejam virgens antes de se casarem. Os efeitos dessa tradição sobre a saúde física e mental das noivas e esposas podem ser catastróficos.

A BBC perguntou a 20 homens entre 20 e 45 anos, casados e solteiros, incluindo acadêmicos, médicos, professores e aqueles que se consideram “mente aberta” como eles reagiriam caso se deparassem com “nenhum sinal de virgindade” durante a primeira relação sexual com suas esposas.

A resposta? A maioria dos entrevistados equiparou “manchas de sangue à castidade e prova da virgindade da noiva”, que, segundo eles, era o alicerce de uma vida conjugal feliz, baseada na confiança e na compreensão.

A BBC conversou com mulheres árabes de várias origens sociais sobre o impacto que suas noites de núpcias tiveram em seus casamentos.

Somayya – 23 anos

Somayya enfrentou a oposição de sua família para se casar com Ibrahim, o homem por quem ela era perdidamente apaixonada.

Mal sabia ela que, depois de seu sonho se materializar, sua vida mudaria viraria de cabeça para baixo.

Foi durante sua noite de núpcias, a primeira vez que o casal dormiu junto, que todo o amor que sentia por Ibrahim desapareceu.

O motivo? As suspeitas dele sobre sua “virgindade”.

Estudante da Universidade de Damasco, na Síria, Somayya, de 23 anos, estava perto de concluir sua graduação em literatura árabe.

Apesar da rejeição de sua família, dado que ela ainda não havia se formado e conseguido a casa própria, Somayya não desistiu do que queria.

Ela se casou com Ibrahim, depositando toda a sua fé no amor e no apoio dele. Também assumiu toda a família do marido, chegando a ponto de declarar que viveria feliz com a mãe dele, quem respeitava como sua própria mãe.

Mas na noite de núpcias, Somayya ficou em choque. Seu marido “ansiosamente e sem lhe dar um momento para recuperar o fôlego, partiu para penetrar seu hímen o mais rápido possível, alegando que seu amor por ela justificava sua ansiedade”.

“Estava cooperando”, diz Somayya, “apesar da minha exaustão, complacente”.

‘Romantismo pareceu evaporar de repente’

Mas qualquer traço de romantismo pareceu evaporar de repente. O rosto dele mudou de cor e expressão.

Somayya explica que se deu conta de que seu marido suspeitava que ela não era virgem ao falar “não há manchas de sangue”.

A maioria das mulheres sangra, em graus variados, durante o rompimento do hímen, mas, segundo médicos e especialistas, o sangramento não ocorre necessariamente com todas as mulheres.

Os hímenes são muitos e variados: alguns só podem ser penetrados cirurgicamente; outros são tão delicados que rompem sem sangrar; e algumas meninas nascem sem hímen, ou seus hímenes se rompem acidentalmente como resultado de uma lesão sofrida durante a infância.

Descrevendo a reação do marido, Somayya diz que “o olhar dele era como se ele tivesse me apunhalado no peito; ele me matou sem saber”.

“Ele nem tentou falar comigo. Me senti abandonada. Era como se fosse uma criminosa aguardando julgamento. Antes do casamento, tínhamos falado sobre muitas coisas”, acrescenta ela, “até a nossa noite de núpcias, que deveria ser a melhor noite de nossas vidas”.

“Pensávamos que conhecíamos muito um ao outro, mas tudo desceu pelo ralo quando ‘nenhum sinal de virgindade surgiu'”.

‘Lençóis ensanguentados’

Embora episódios como esse sejam comuns em sua sociedade, Somayya não esperava que passasse por isso, pois partia do pressuposto de que as atitudes dos homens mais jovens haviam mudado e que suas opiniões eram diferentes da geração de seus avós. Afinal de contas, pensava ela, seu noivo era uma pessoa estudada e de mente aberta.

Mas quando ele sugeriu, no dia seguinte à noite de núpcias, que os dois visitassem um médico para confirmar a virgindade de Somayya, ela ficou estupefata. Testes de virgindade para meninas são um costume antigo, mas os motivos dos testes e métodos de inspeção diferem de uma sociedade para outra.

Em famílias mais conservadoras, não é incomum celebrar a virgindade da menina em sua noite de núpcias com alarde.

Isso inclui exibir a parentes dos noivos os lençóis ensanguentados e realizar uma cerimônia especial para marcar o significado da “confirmação”.

Existem maneiras de obter a evidência desejada — é relativamente fácil ‘costurar’ o hímen cirurgicamente, e existem hímenes artificiais de fabricação chinesa – próteses que dão a aparência de um hímen intacto e liberam um líquido vermelho que se parece com sangue quando submetido à pressão.

Mas os desdobramentos podem ser trágicos. Mulheres podem até ser mortas em nome da “honra”.

‘Fazer sexo parecia sujo’

Ao visitar um ginecologista no dia seguinte, Somayya descobriu que seu hímen era espesso demais e que só romperia se ela desse à luz naturalmente.

Seu marido respirou aliviado e um sorriso se formou em seu rosto, mas era tarde demais. Somayya estava decidida a se divorciar o mais rápido possível.

Ao explicar por que demorou um pouco para pedir o divórcio, Somayya diz: “Meu marido se tornou um estranho para mim. Fiquei angustiada por ele reproduzir o discurso da sociedade sobre a virgindade. Não pude prever o que ele faria em seguida. Tudo poderia acontecer. Não podia mais ter certeza do meu bem-estar ao lado de alguém que desfez [uma relação de] vários anos em questão de segundos”.

Após uma breve pausa, Somayya acrescenta: “Na verdade, não sei como descrever meu estado de espírito e como me senti em relação a ele depois daquela noite, mas não aguentava dividir o mesmo teto depois que ele reduziu todo o meu ser a uma membrana inútil. Afinal, sou um ser humano, não apenas hímen”.

Desde então, a saúde psicológica de Somayya se deteriorou. Ela não saía mais de casa. Sentia-se como se estivesse desempenhando o papel tradicional da mulher subserviente a seu marido.

Nos três meses seguintes, mesmo sem querer, confessa ter feito sexo com o marido algumas vezes. “Quando ele me penetrou, fui tomada por uma repulsa”, conta ela. “Não queria, e não sentia nada, porque minha paixão por ele acabou na noite de núpcias. Esperava que ele terminasse e me deixasse em paz. Fazer sexo com ele me enojava, porque era como se fosse uma tarefa que eu tinha que executar, em vez de um ato de amor”.

Amal al-Hamid e o aconselhamento para noite de núpcias

Somayya não é um caso único em sua sociedade. Muitas mulheres escondem o problema, para evitar serem desprezadas e julgadas pela sociedade.

Mais tarde, crianças e famílias são afetadas pela falta de abertura para discutir o assunto de forma livre e franca.

Em entrevista à BBC, a psiquiatra Amal al-Hamid falou sobre o estado psicológico de uma mulher na noite de núpcias. Ela oferece conselhos a noivos prestes a se casar para ajudá-los a evitar imprevistos: “O aconselhamento psicológico não é um serviço procurado em nossa sociedade, devido a noções preconcebidas equivocadas”.

Al-Hamid diz acreditar que participar de sessões de aconselhamento pré-nupcial pode ajudar a garantir um começo feliz no casamento, cujo alicerce, segundo ela, é “o diálogo e a compreensão”.

“Os casais devem procurar aconselhamento psicológico para obter informações úteis e relevantes, e perguntar qualquer coisa – não importa quão particular seja – sobre esse momento de intimidade, sobre os diferentes tipos de hímen e como garantir que sua penetração não cause cicatrizes duradouras para as mulheres, para que seja uma noite agradável, em oposição a uma noite dolorosa”.

“Infelizmente”, continua al-Hamid, “muitas pessoas pensam que sabem muito sobre o estado psicológico e fisiológico de uma mulher recém-casada, mas o contrário é comprovado por inúmeras experiências”.

“Em muitos casos”, observa ela, “esses problemas não são tratados e são varridos para debaixo do tapete, tornando-se uma bola de neve mais tarde”.

O fim do casamento de Somayya

Poucos meses depois, Somayya confessou ao marido sobre seu desejo de terminar o casamento, dizendo que não tinha como reverter sua decisão porque temia por sua vida e porque não havia amor nem paixão depois daquela fatídica noite de núpcias.

Ela também revelou como achava que sua suspeita “insensível” a afrontara e a humilhara.

Ela diz: “Ele ficou chocado, porque se sentia autorizado a questionar se eu tinha tido relações sexuais com outros homens ou não. Ele disse que não se divorciaria de mim enquanto eu vivesse e me aconselhou a pensar com cuidado no meu “comportamento rebelde”, pois resultaria em “arrependimento e remorso”.

“Nossa sociedade tem dois pesos e duas medidas”, diz Somayya, “com as aventuras sexuais dos homens reconhecidas e até elogiadas, mas quando se trata de mulheres, esse comportamento é motivo de rejeição da sociedade e, às vezes, punível com a morte”.

“Meu marido era um desses homens, ria enquanto se gabava a seus amigos sobre suas aventuras sexuais, mas ficava furioso se eu fizesse qualquer brincadeira sobre isso”, acrescentou.

Depois que sua família se recusou a apoiá-la em buscar o divórcio, descrevendo sua lógica como “mesquinha e trivial”, Somayya deixou a Síria em junho passado e se mudou para a Europa.

Jumanah – 45 anos

Jumanah viveu a maior parte de sua vida na Síria, no bairro al-Bab de Aleppo, no sul do país, antes de se mudar para Bruxelas, na Bélgica, em 2016.

Ela diz à BBC que esperou 20 anos para finalizar seu divórcio.

“Tinha 19 anos quando meu pai decidiu que eu me casaria com meu primo, contra a minha vontade.”

“Não queria. Adorava estudar, mas eles me convenceram que ele era a pessoa certa para mim, e eu acabaria me acostumando a ele. O amor virá mais tarde, diziam eles”.

É tradição entre muitas famílias conservadoras que vivem em aéreas rurais que parentes mais velhos dos noivos, de ambos os sexos, esperem na porta da casa deles enquanto a “virgindade” da noiva é inspecionada e confirmada.

Jumanah relembra vividamente a noite de núpcias e com uma dor palpável, como se estivesse passando por tudo novamente.

“Ele fechou a porta e disse que deveríamos nos apressar, pois os anciãos da família estavam esperando a verificação”.

“Foi absolutamente horrível”, diz ela. “Meu marido não falou comigo, mas começou a me penetrar como se estivesse cumprindo uma tarefa, sem se preocupar em falar comigo, mesmo por alguns minutos, enquanto eu tremia de medo e repulsa.”

Jumanah acrescenta que “apesar da minha dor física e sofrimento emocional, a única preocupação de meu marido era aquela mancha de sangue”.

Vergonha

“Não sangrei naquela noite, então meu marido irrompeu o silêncio daquela noite gritando: “Não há sangue! ” E começou a falar uma enxurrada de palavrões que não consigo repetir. Seus olhos eram como brasas que me queimavam.”

Por uma hora mais ou menos, ela foi tomada pelo choque e pelo medo. Jumanah ficou atordoada e incapaz de pronunciar uma palavra. Eles nem chegaram a esperar até a manhã seguinte, mas a arrastaram para fora na mesma noite para se consultar com um ginecologista que confirmaria sua virgindade.

“Lembro-me do médico que estava me consolando como se fosse meu pai”, lembra ela, “e denunciando meu marido pelo que ele fez”.

Jumanah foi forçada a morar com o marido. Ela sabia que sua família e todos ao seu redor não apoiariam seu desejo de se separar, nem naquela noite nem durante 20 anos de conflito conjugal.

Cerca de 20 anos e quatro filhos depois, Jumanah não esqueceu a humilhação que sofreu.

Assim que chegou a Bruxelas com seus filhos, ela pediu o divórcio para se vingar do ex-marido e da sociedade por não apoiá-la.

Ela diz que gosta de sua vida em Bruxelas com seus filhos e não pretende se casar novamente. Em vez disso, revela estar ansiosa para realizar seus sonhos acadêmicos, que antes lhe foram negados, e está interessada em criar seus filhos de maneira diferente da que foi criada.

“Estou feliz agora”, diz ela, “porque consegui trazer minhas duas filhas para cá. Não me divorciei apenas do meu marido; me divorciei da sociedade que não me tratava de maneira justa.”

Rozana, Amina e a cirurgia de reparação do hímen

Outra mulher, Rozana, explica por que se separou de seu noivo de cinco anos.

“Confiei nele e o amei muito. Uma vez ele insistiu que eu fizesse sexo com ele antes do casamento, visto que era, tecnicamente, sua esposa. Acabei aceitando e fiz.”

Seis meses depois, no entanto, as famílias dela e de seu noivo brigaram. Mas o pior estava por vir, quando os dois se separaram.

“Em nossa sociedade, não há como debater qual punição é aplicada pela perda da virgindade”, diz ela, acrescentando que muitas das vezes o resultado é a “morte”.

“Felizmente, minha amiga estava lá para ajudar. Ela me aconselhou a visitar um ginecologista sob sigilo com o qual eu passaria por uma cirurgia de reparação e receberia um novo hímen fabricado na China.”

“Sem essa pequena cirurgia, eu estaria morta há muito tempo.”

Amina, que vem de uma família conservadora e bastante pobre, sofreu uma queda na porta do banheiro e sangrou um pouco.

Sem ter percebido o que aconteceu, ela contou o ocorrido à mãe, que a levou correndo para um ginecologista. O diagnóstico: Amina havia rompido o hímen.

“Aquele dia foi uma provação para minha mãe. Ela não sabia o que fazer. Depois de consultar minhas três tias, foi marcada uma consulta para a cirurgia de reparação do hímen. Esses procedimentos são realizados em total sigilo, pois são proibidos por lei em nosso país, e porque a maioria das pessoas não acreditaria que sofri um acidente e teria lançado dúvidas sobre minha virgindade pelo resto da minha vida “.

‘Testes de virgindade’

Em vários países árabes e muçulmanos, muitas mulheres são submetidas a testes de virgindade antes do casamento, após o qual a noiva em potencial recebe um certificado confirmando sua condição de solteira.

A ONG Human Rights Watch condenou a Indonésia e outros países árabes e muçulmanos nos quais são realizados “testes de virgindade” dolorosos.

As mulheres mais velhas geralmente têm a tarefa de realizar a inspeção invasiva, que envolve a inserção de dois dedos dentro da vagina para determinar se o hímen está ou não presente.

A prática, generalizada no Oriente Médio e no norte da África, foi descrita pela HRW em um relatório publicado em 2014, como “uma forma de violência baseada em gênero, discriminação desumana contra as mulheres e uma violação flagrante dos direitos humanos”.

Um estudo realizado pela BBC revelou que Índia, Afeganistão, Bangladesh, Irã, Egito, Jordânia, Líbia, Marrocos e outros países árabes e África do Sul – lideraram o ranking internacional de países onde ainda são feitos testes de virgindade.

Segundo o relatório da HRW, Egito, Marrocos, Jordânia e Líbia estão entre os países onde o teste de virgindade é mais amplamente praticado.

Em resposta, autoridades de saúde do Marrocos e do Egito negaram categoricamente a alegação e reiteraram a ilegalidade da prática, que é feita secreta e ilegalmente.

*Os nomes das mulheres citadas nesta reportagem foram modificados a pedido das entrevistadas

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