Sujeitos chatos

exatas duas décadas fiz minha primeira viagem à Europa. Foi sensacional caminhar por cidades de países que tanto admirava nos livros e filmes. Não me decepcionei e, por fim, era tudo ao vivo. Do enorme elenco de encantamentos e belezas, foram as praças as que grudaram na minha imaginação e memória. Notadamente, as de Paris. Nelas enxerguei como a população pode desfrutar 100% dessas varandas verdes no mais-que-concreto das cidades.

Por Fernanda Pompeu , do Yahoo

Vividos meses de viagem, voltei para Sampa decidida a frequentar praças. Peguei um livro, uma garrafinha de água mineral e fui me instalar num banco do Parque Trianon – pedacinho de Mata Atlântica em plena avenida Paulista, com exemplares de araribá-rosa, andá-açu, pau-ferro. Qual o quê! Não morreram dois minutos e um sujeito sentou-se ao meu lado a puxar o interrogatório: se eu estava sozinha, se esperava pelo marido, blablablá, se não podia ajudá-lo com algum dinheiro. Dei minha água mineral, fechei o livro, deixei o Trianon. Expulsa.

Mas teimosa – herança de pai e mãe – tentei a Praça Buenos Aires, joia verde no bairro de Higienópolis. Repeti o roteiro: livro e garrafinha de água mineral. Tudo o que eu queria era avançar nas páginas do Grande Sertão: Veredas. Se Guimarães Rosa escreveu: O sertão é dentro da gente, por que a Buenos Aires não estaria dentro de mim? A cena foi cópia. Um sujeito se sentou ao meu lado, iniciando o interrogatório. Cuja pergunta principal era: O que eu fazia sozinha ali? Expulsa novamente. Desisti.

Na época, depois dos dois fracassos, me pus a pensar que a sensível diferença entre praças de Paris e de Sampa estava no uso que os cidadãos das duas cidades faziam delas. Se lá a praça era ocupada por todos – crianças, velhos, casais, gente sozinha – aqui ela era território quase exclusivo dos sujeitos chatos. Esses que não admitem que uma mulher desacompanhada possa ocupar uma praça para ler um livro e tomar água mineral.

Vinte anos depois, talvez a relação dos paulistanos com suas praças tenha mudado. Existe uma esperança na avenida Pompeia. É a Praça da Nascente, defendida e amada pelos moradores do entorno. Criaram um laguinho, cuidam das plantas, e promovem eventos de alegre ocupação. Esta semana vou experimentá-la. Farei o teste da mulher sozinha com livro e água mineral.

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