Surdo por conveniência
Em uma determinada repartição pública de Salvador existia um servente tido por muitos como relapso, pois não obedecia às ordens que lhe eram dadas. Quando lhe perguntavam o motivo da desobediência, ele respondia que não havia escutado a ordem. Preocupada com o problema, a chefe da repartição mandou o funcionário para um médico amigo, para que fosse realizada uma avaliação auditiva no mesmo. Depois de feito o exame, a chefe procurou saber do resultado e o funcionário respondeu: “O doutor mandou avisar à senhora que eu tenho um problema, sim, sou surdo de ‘convença'”. Esse “causo” é um excelente representante da falta de compromisso de um funcionário com a função que lhe coube exercer, até mesmo porque o referido homem só era considerado um funcionário, e recebia um salário como tal, por ter uma função a cumprir. Apesar do tema deste artigo ser a surdez por conveniência (e não de “convença”), é tentador versar também sobre a palavra e o comportamento de comprometer-se com algo. Comprometer-se é obrigar-se a cumprir um pacto que foi feito, tenha sido ele escrito ou não. O verbo obrigar, que tem origem no latim obligare, significa unir. Quando, portanto, dizemos um sonoro “muito obrigado”, estamos sugerindo a alguém que nos fez um favor que a ele estaremos ligados, em virtude dos serviços que nos foram prestados. Obrigação é uma das palavras-chave do candomblé: aquela que abre muitas portas. É comum aos adeptos da referida religião falar as seguintes frases, relacionando-as a seus rituais: “Estou me preparando para minha obrigação”, “estou em obrigação, por isto não posso ingerir bebidas alcoólicas”… Fazer “obrigação” fica sendo, então, uma forma de estar cada vez mais unido às divindades. Cumprir um pacto, no entanto, perde totalmente o valor se ele não for feito com um verdadeiro envolvimento, palavra esta que, não sem sentido, é outro sinônimo de comprometimento.
Sou neta de portugueses e de africanos, razão pela qual minhas colegas do grupo escolar, com quem me relacionava muito bem, diziam para mim (com a inocência e a singeleza da infância): “Stella, você não é preta, você é marrom”. Sou preta e branca, sou marrom! Aliás, a Bahia é colorida com cinquenta tons de marrom. Se minha parte branca estuda as origens latinas das palavras da língua portuguesa, minha parte negra estuda a língua africana que fazemos uso no candomblé: o yorubá arcaico. Nessa língua, comprometer é wuléwu, palavra que ao ser analisada tem-se: a raiz wù (agradar), a mesma que forma wúlò, que significa útil; e lé, que é traduzida como seguir em frente, ser mais do que um na multidão. Para o povo yorubá e, consequentemente, para os brasileiros que se guiam pela religião nagô, uma pessoa comprometida é aquela que é útil, pois cumpre a função que lhe foi destinada, e por isto pode seguir sempre em frente, se distinguindo da massa uniforme; uma pessoa comprometida é especial, pois já encontrou sua especificidade.
Esse mesmo povo que valoriza o comprometimento também nos ensina a sagacidade da surdez por conveniência (àgböya em yorubá), comportamento que deve ser utilizado de maneira contrária ao funcionário do “causo” contado, isto é, de maneira a não atrapalhar a função com a qual nos envolvemos, aquela com a qual nos comprometemos. Minha saudosa e amada mãe de santo reforçava esse ensinamento repetindo, incansavelmente, o seguinte ditado africano: Çnitinpè ôko dakç, iwôli o agbö àgböya = Para ele que lhe chama inoportunamente, você finja não ouvir. Quantas e quantas vezes precisamos e devemos fechar, convenientemente, os nossos ouvidos para as fofocas maldosas, para as palavras malditas, para as piadas sem nenhuma graça, para as insinuações ferinas (que como o próprio nome está dizendo, só servem para ferir, machucar, as pessoas)… Todos esses comportamentos, sabemos, são humanos, mas temos a obrigação, o compromisso, de nos tornarmos divinos. Desejo, portanto, para mim e para os leitores deste jornal, que possamos usar de forma conveniente a quase que esquecida (inclusive neste texto) surdez por conveniência.
Fonte: A Tarde