Tradição exemplar: Negroesia, de Cuti

Por Jônatas Conceição da Silva1


Acredito que a partir do momento que o negro resolve falar de sua realidade e identidade como negro, trazendo as marcas de sua história, mesmo dentro de uma língua portuguesa, ortodoxa, acadêmica, que seja, se ele conseguir fazer isso com arte e se essa literatura estiver sancionada por uma produção, ela existirá. A produção existe. É fato. Portanto, atestada pela produção, a literatura negra existe – Oswaldo de Camargo, in:  Portal Afro

Jônatas Conceição, Professor, escritor e diretor do bloco afro Ilê Aiyê. Publicou Vozes Quilombolas – Uma Poética Brasileira (EDUFBA/Ilê Aiyê), 2005.

E o leitor, ele existe? Creio não ser de bom alvitre começar uma resenha provocando. Por isso deixarei esta discussão para última parte do texto. Me cobrem.

 

Luiz Silva – Cuti é o escritor exemplar da minha geração, a que começa a se afirmar nos anos 1970. Lembro-me, é apenas um exemplo, que ele fazia cartas com papel carbono para assegurar a posteridade. Isso foi há tempo, o computador ainda não nos infernizava.

 

Cuti ebanece a literatura brasileira, em 2007, com um novo livro: Negroesia, a sua primeira antologia poética. Mais uma vez, a Mazza edições marca sua presença em nossa história literária. O que muito nos enobrece. Mas, ainda não falo do livro, falo das pessoas, dos acontecimentos.

 

Estávamos eu, Cuti e Oswaldo de Camargo, no entardecer de 2006, no apartamento do autor de Negroesia esperando o momento para a Corrida de São Silvestre. Era o segundo desafio, a segunda corrida, que eu e Cuti nos submetíamos, com muito espírito esportivo, nesses anos de convívio. Fui eu quem pediu para chamar Oswaldo para a concentração, com o assentimento geral das famílias. Ele é meu pai literário. Gosto de ouvi-lo, sinto-me ouvindo um Grande Homem. Oswaldo e Cuti falaram de literatura, das nossas dificuldades e das nossas vitórias. A trigésima edição dos Cadernos Negros, do Quilombhoje, a sair, foi uma delas. Pedimos para Oswaldo colaborar com um conto e ele se sensibilizou. Depois do almoço saímos. Estava perto do horário da corrida. Oswaldo ficou feliz ao ver a Paulista povoada, sem carros. Ele nos acompanhou até onde a chuva permitiu. Eu fico até hoje querendo guardar a sua presença e as suas palavras sinceras e decisivas. Como estas da epígrafe deste texto.

 

Isso mesmo, “a produção existe. É fato. Portanto, atestada pela produção, a literatura negra existe”. Apenas quem tem produção se permite antologiá-la. E desde Poemas da carapinha, de 1978, a produção de Cuti é vital:

 

{xtypo_quote}escrevo a palavra
escravo
e cravo sem medo
o termo escravizado
em parte do meu passado
criei com meu sangue meus quilombos
crivei de liberdade o bucho da morte
e cravei para sempre em meu presente
a crença na vida.
“Cravos vitais”, in: Poemas da carapinha.
{/xtypo_quote}

 

De 1978 a 2007, Cuti fez de tudo em literatura: poesia, conto, novela juvenil, teatro, uma dissertação de mestrado e uma tese de doutorado que cito: “A consciência do impacto nas obras de Cruz e Sousa e de Lima Barreto”. Mas, é para falar de Negroesia.

 

Cuti condensa a sua exemplar obra poética em quatro seções: Cochicho, Aluvião, Chamego e Axé. Os poemas não inéditos foram selecionados de, além de Poemas da carapinha, dos seguintes livros: Batuque de tocaia, 1982; Flash crioulo sobre o sangue e o sonho, 1987; e Sanga, 2002. Estão também selecionados para a Negroesia, os poemas publicados na série Cadernos Negros, da qual o escritor foi um dos criadores e mantenedores de 1978 a 1993.

 

Uma resenha de livro deve ser feita para motivar o leitor a comprá-lo e a lê-lo. Com a obra de Cuti este fato não deveria ser diferente. Mas, penso também que a sua obra se basta tanto formalmente como na sua perseguição incansável de nos descreviver.

 

E onde se encontra o leitor da literatura negra brasileira? Nós, os escritores, estamos em centenas de livros, em vários sites, em diversas antologias. Fazemos parte de você, mesmo que a história deste país tenha tentado nos afastar da literatura escrita. Mas, nós temos uma grande e bela tradição literária. O próprio Cuti confirma isso:

 

{xtypo_quote}sob a vasta bigodeira de machado
os lábios da raça escondidos acho
a lâmina do riso e o discreto escracho
em cruz fico muito à vontade
para reunir setas de revolta
angústias e cravos
ensaio o arrombamento de portas
com o pé-de-cabra
que me empresta
com o deboche de sua risada
o gama
com o lima afio as facas
entro na trama
solano eu abraço
no boi-bumbado socialistado
num salto a-rap-iado
chego junto com os mano
nossa vida
muito tato e tutano.
“Tradição” in: Negroesia.
{/xtypo_quote}

 

É com Machado de Assis, Cruz e Souza, Luiz Gama, Lima Barreto e Solano Trindade que Luiz Silva – Cuti se irmana e se perfila. Esta tradição não é peso nem fardo. Ela opera, em Cuti, no sentido de revelar o mundo negro, para nós e todos, em forma de poesia. E todos nós sabemos com o poeta que “a palavra negro/tem sua história e segredo”.

PS.: consulte os sites sobre literatura negra brasileira:

Fonte: Jornal Írohin


1. Professor de Literatura Brasileira e Afro-Brasileira na Universidade do Estado da Bahia -UNEB – Campus XX – Euclides da Cunha. Mestre em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Bahia. Diretor da Associação Cultural Bloco Carnavalesco Ilê Aiyê. Radialista do Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia. Editor do Caderno de Educação do Ilê Aiyê. Membro do Conselho Editorial e um dos editores da revista Outros sertões – UNEB – Campus XXII – Euclides da Cunha. Autor de Vozes quilombolas: uma poética brasileira (2004).

Matéria original: Tradição exemplar: Negroesia, de Cuti

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