No início deste ano, Radija saiu de Araçuaí para morar em Belo Horizonte com o marido. Procurou emprego das mais diferentes formas e chegou a participar do processo seletivo de um supermercado. Mas quando a responsável pela seleção viu o nome Douglas impresso na ficha de inscrição, deu logo um jeito de encontrar motivo para dispensá-la. “Ela disse que era para eu ir embora por não ter ensino médio completo. Mas uma moça com menos estudo conseguiu a vaga”, desabafa.
por Cinthya Oliveira no R7
A oportunidade de emprego veio apenas há um mês, para trabalhar no recém-inaugurado 269 Chilli Pepper, primeiro hotel gay de Minas Gerais. “Minha vida mudou para melhor. A família do meu marido passou a me aceitar e agora já penso em construir a minha casa”, diz a transexual de 23 anos.
Assim como outras pessoas que se identificam com um gênero diferente do designado no nascimento, Radija teve de superar muitos preconceitos ao longo da vida – foi expulsa de casa pela mãe e sofreu bullying na escola – para conseguir uma colocação no mercado de trabalho.
Qualidades
Radija é auxiliar de serviços gerais na filial mineira do famoso hotel específico para o público homossexual de São Paulo. Na metrópole, são oito transexuais entre 80 funcionários; aqui são três em meio a 26. De acordo com o dono do empreendimento, Douglas Drummond (acionista dos motéis Forest Hills e Green Park, além do Ouro Minas), as transexuais têm grandes qualidades.
“Elas têm a perspicácia de uma mulher e a força física de um homem, importante para quem vai trabalhar numa atividade mais pesada”, pondera o empresário.
“Além disso, entendem o trabalho como ótima oportunidade e são extremamente dedicadas. Em São Paulo, tenho uma funcionária trans que está com a gente há dez anos”.
Poucas opções
Renata Calixto, de 34 anos, também só conseguiu lugar no mercado de trabalho formal – leia-se com carteira assinada – após entrar para a equipe do hotel, para ser camareira. Segundo ela, as portas das atividades econômicas são fechadas para as transexuais, que costumam ver apenas duas opções de ganhos: em salões de beleza e na prostituição.
“Percebi que o respeito das pessoas mudou no momento em que passei a ter um trabalho. Houve diminuição do preconceito”, diz Renata, caçula de uma família de nove irmãos que perdeu a mãe aos 17 anos, mesma época em que começou a vestir roupas femininas.
Douglas costuma incentivar outros empresários a contratar transexuais. “Na câmara do comércio, costumam me perguntar o que pode ser feito para transformar a empresa em ‘gay friendly’. Respondo: ‘contrate uma travesti’. Parte das pessoas vai pensar ‘que legal, essa é uma empresa moderna’. E a homofobia vai diminuir, porque os clientes vão passar a ter contato com as transexuais. Normalmente, as pessoas renegam o que não conhecem”.
Crachá com nome social na Câmara de Vereadores
Figura conhecida na cidade por militar em nome da causa LGBT e por melhorias no bairro Taquaril, Walkiria Gomes, de 50 anos, trabalha como assessora parlamentar no gabinete do vereador Pedrinho Patrus. Mas o histórico dela na política não foi suficiente para que não sofresse preconceito no próprio ambiente de trabalho.
“Mesmo com o crachá no peito, fui barrada várias vezes pelos seguranças da Câmara (Municipal de Belo Horizonte)”, conta Walkiria, que teve de conquistar o direito de usar o nome social no crachá e no e-mail institucional, ao assumir o cargo há mais de dois anos.
“O Pedro Patrus foi cobrar do presidente da Câmara na época o meu direito de usar o nome social. Quando negaram, o Pedro disse: ‘mas o meu nome de batismo não é Pedro Patrus, do Leo Burguês não é Leo Burguês, do Pelé do Vôlei não é Pelé do Vôlei. E por que esses nomes são respeitados nos documentos e placa na porta do gabinete?”, lembra a transexual, que também trabalhou na Assembleia Legislativa.
Agora, o direito que Walkiria conquistou na Câmara poderá ser estendido a outros transexuais da capital.
“Está tramitando na Câmara um projeto de lei que obriga a Prefeitura de Belo Horizonte a reconhecer os nomes sociais em todas as autarquias. Assim, funcionários de órgãos municipais e alunos de escolas poderão ser beneficiados”.
Respeitada
A identidade Walkiria nasceu há dez anos. Antes, era Waltinho, homem nascido em Tambacuri (Vale do Jequitinhonha) que trabalhou como lavrador, servente de pedreiro e segurança, além de ter vivido um casamento de 15 anos – que lhe rendeu cinco filhos e quatro netos.
Hoje, Walkiria mora na mesma rua onde vivem todos os outros integrantes da família e tem um bar no Taquaril. Sente-se respeitada em toda a comunidade e chegou a ser presidente do time de futebol masculino do bairro.
Preconceito ela vivencia quando tem de entrar em ambientes frequentados por pessoas da classe média – inclusive, diz ela, em alguns espaços da Câmara. “Quando entro, é como se fosse um pavão abrindo o rabo”.
Realizada no dia 19, ‘Parada Gay’ dá visibilidade à causa
A luta das transexuais por reconhecimento terá mais visibilidade no próximo dia 19, quando acontece a 18ª edição da “Parada do Orgulho LGBT de Belo Horizonte”. Dessa vez, o tema da festa – organizada pelo Centro de Luta pela Livre Orientação Sexual de Minas Gerais (Cellos) – será “18 anos colorindo as ruas e garantindo direitos”.
A concentração da festa acontece novamente na Praça da Estação, ao meio-dia, em meio a um ato político e cultural com militantes e artistas. Às 16h, os trios elétricos deixam a Praça e percorrem um trajeto pelo centro da cidade, passando pela rua da Bahia e avenida Afonso Pena. O encerramento deve ser no cruzamento com a rua Professor Moraes, na Savassi.
Uma das novidades para os participantes é o guia “Amigos da Diversidade”, com informações variadas de interesse do público LGBT. Na publicação estão listados estabelecimentos como bares, clubes, cinemas, restaurantes, saunas, hotéis e outros que são “gay friendlys”.
Nova identidade não era respeitada em faculdade de moda
Se Walkiria tem o nome social respeitado, Cristal Lopez, de 32 anos, não teve a mesma sorte. Ela é um exemplo raro de quem conseguiu superar os preconceitos social, racial e de gênero para estudar o curso superior de moda.
Durante os quatro anos de estudo, foi obrigada a ouvir colegas e professores a chamarem pelo nome de batismo – uma das principais formas de bullying sofridas pelos transexuais nos ambientes escolar e profissional.
“Em todo início de semestre, eu procurava os professores e explicava a situação, mostrando meu nome social. Mesmo assim, muitos continuavam a me chamar pelo nome de batismo. Assim como os colegas. Era um bullying discreto, um preconceito velado”, relata Cristal. “A primeira luta de uma transexual é para ter a identidade respeitada”.
Mesmo sofrendo bastante com a situação, ela encarou o curso até o fim. Todas as mensalidades foram pagas com dinheiro conseguido por meio de prostituição.
“Como não há emprego para transexuais, essa era a única forma de pagar as contas”.
Arte
Com o diploma em mãos, Cristal começou a trabalhar como personal stylist. Mas também tem se dedicado ao trabalho artístico, com shows como drag queen e performer, além de integrar espetáculos que abordam questões referentes ao universo transgêne-ro.
Ela espera não ter mais de viver o constrangimento de perder uma oportunidade de trabalho no momento em que o empregador olha para seu documento. “Já aconteceu algumas vezes de demonstrarem interesse em me contratar, mas quando fui dar entrada nos documentos, voltarem atrás”, diz Cristal.
Uma das dificuldades sofridas pela maioria dos transexuais é a baixa escolaridade. São poucos que conseguem superar o bullying e o despreparo de professores e escolas. Muitos ainda têm de lidar com a rejeição da própria família