Um andar abaixo

Seis meses depois da operação policial mais letal da História do Rio de Janeiro, que deixou mortos 27 civis e o inspetor André Leonardo de Mello Frias, 48 anos, na favela do Jacarezinho, na capital, o estado amanheceu de novo diante da barbárie. Desta vez, uma intervenção da Polícia Militar, em resposta ao assassinato do sargento Leandro Rumbelsperger da Silva, 40 anos, levou à morte de nove homens no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo. É a mesma comunidade onde, um ano e meio atrás, o menino João Pedro Mattos Pinto, 14 anos, foi assassinado dentro da casa da família por agentes que integravam uma mal explicada ação conjunta das polícias Civil e Federal. Na chacina do Salgueiro, assistimos pela TV a familiares e vizinhos depositarem num terreno corpos das vítimas resgatados de um mangue. Descemos, mais que um degrau, um andar inteiro na escala civilizatória, quando seguimos adiante ao saber que uma mãe, com lama até o joelho, arrastou o corpo do filho morto por policiais, quando o arcabouço penal não inclui pena de morte, tampouco execução sumária. A democracia está em risco também quando naturalizamos a barbárie.

A violência homicida como política de segurança pública no Rio não é novidade. Estatísticas do ISP, órgão oficial fluminense, mostram que o número de mortes decorrentes de intervenção por agentes do Estado aumenta desde 2013. Atingiu o pico em 2019, primeiro ano no Palácio Guanabara do governador Wilson Witzel, ex-juiz federal que se elegeu na esteira do bolsonarismo com a promessa de “atirar na cabecinha” de criminosos. No ano passado, diante de nova escalada em plena pandemia, o PSB e um conjunto de organizações da sociedade civil apelaram ao Supremo Tribunal Federal com uma arguição de descumprimento de preceito fundamental da Constituição. A ADPF 635, em junho de 2020, recebeu decisão inédita do relator Edson Fachin, mais tarde referendada pelo plenário da Corte. Estavam suspensas as operações policiais em favelas durante a pandemia, salvo em casos de absoluta excepcionalidade.

Nos meses seguintes à decisão do STF, as operações no estado caíram à metade. O Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni-UFF) calculou que, em 2020, a letalidade policial diminuiu 34% em relação a 2019. Foi o menor número de mortes em 15 anos. Tudo isso sem prejuízo da tendência de queda nos crimes contra o patrimônio e contra a vida. Entretanto, desde outubro do ano passado, a determinação do STF passou a ser descumprida. Voltaram a crescer tanto o número de operações quanto o de mortos, quase sempre negros e favelados. Aumentaram também as ocorrências classificadas como chacinas (ações com três ou mais mortos). De janeiro a outubro, a Rede de Observatórios da Segurança contou 38, das quais 27 envolvendo operações policiais, que deixaram 128 mortos. O Instituto Fogo Cruzado mapeou 59 chacinas na Região Metropolitana neste ano, que terminaram com 245 vítimas fatais; 44, com 187 mortes, ocorreram em ações policiais.

Logo após o massacre no Jacarezinho, os autores da ADPF 635 apelaram novamente ao Supremo. Denunciaram a desobediência das autoridades fluminenses e solicitaram que o Ministério Público estadual assumisse as investigações do episódio, o que aconteceu. No voto apresentado em maio passado, o ministro Fachin determinou a elaboração, pelo governo do Rio, de um plano de redução da letalidade policial, instalação de câmeras em viaturas e fardas, formação de um observatório judicial de polícia cidadã, com presença da sociedade civil.

O julgamento foi suspenso pelo pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes. Seria retomado ontem como primeiro item da pauta. Mas, na semana da chacina do Salgueiro, foi deslocado para sétimo tema, por decisão do ministro Luiz Fux, carioca, presidente do STF. Autores e amicus curiae, entre os quais a Defensoria Pública do Rio e as organizações Justiça Global, Conectas, CNDH, MNU, IBCCrim, encaminharam ofício solicitando sessão extra hoje ou retomada na semana que vem como prioridade. Fux anunciou então que a ADPF encabeçará a pauta da próxima quinta-feira, 2 de dezembro.

A Defensoria do Rio também decidiu comunicar ao Ministério Público Federal o descumprimento da decisão do STF no episódio do Salgueiro. A cadeia de custódia das provas foi comprometida, porque evidências não foram preservadas. A PM não informou a Polícia Civil sobre a operação com mortos, a cena do crime foi alterada, não há testemunhas nem câmeras no local, armas não foram recolhidas, e a perícia só encontrou estojos. O objetivo de vingança pelo policial morto é indisfarçável, comentou uma fonte — aparece até no registro da ocorrência na Delegacia de Homicídios. Há denúncia de que os PMs usaram drone (de propriedade pessoal) para localizar os criminosos no mangue, cena que remete a “Bacurau”, filme de Kleber Mendonça Filho, sucesso de 2019. É barbárie em estado puro, que só produz luto. Nas mãos do STF, a esperança de um novo protocolo de atuação da polícia nas favelas.

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