Abandonar corpos foi desprezo da polícia por mortos e moradores do RJ

A chacina policial no Complexo do Salgueiro, que ocorreu na madrugada desta segunda (22) no Rio de Janeiro, tem um componente que torna a ação ainda mais violenta: o abandono no mangue dos corpos das oito pessoas mortas por homens do Bope (Batalhão de Operações Policiais). A atitude da polícia fluminense obrigou mulheres, vizinhos, mães, pais, filhos e avós a entrar na lama para procurar seus parentes, resgatar seus corpos abatidos pela polícia e zelar por suas integridades.

Uma angústia de não saber se — dessa vez — o tiro acertou o seu filho. No meio da escuridão da mata, na lama do mangue, era a voz do desespero que tomava o ambiente, como contou a repórter Daniele Dutra, que esteve no local. Coube aos familiares e moradores do Salgueiro retirar e preservar os corpos até a chegada do “rabecão”. A espera levou a madrugada toda, a manhã inteira e se alongou até a tarde.

É um elemento de crueldade que se soma às camadas de desrespeito, racismo, violações de direitos humanos a que estão submetidos os moradores das favelas sempre que acontecem operações policiais.

O abandono dos corpos foi um passo adiante, um gesto. Em vez de levar para o IML, os policiais jogaram os corpos no mangue

Silvia Ramos, coordenadora do Centro de Estudos da Segurança e da Rede de Observatórios da Segurança

O desrespeito e o desprezo pelas vidas das favelas, um território majoritariamente negro, se expressaram com os oito homens que foram mortos, envolveram familiares das vítimas em uma busca absolutamente desumana, e se estenderam a todos os moradores, que têm de conviver diariamente com a violência.

“Uma ação dessas revela uma política de insegurança dos direitos e não uma política de segurança pública”, diz Guilherme Pimentel, ouvidor geral da Defensoria Pública do Rio de Janeiro. “Foi uma ação de alta letalidade que não se preocupou com cuidados básicos como avisar a Polícia Civil, providenciar remoção, perícia. Falta de respeito à cidadania da população das favelas por parte dos agentes públicos.”

Nesta terça (23), a Polícia Civil identificou as vítimas, que tinham entre 17 e 52 anos. Cinco delas tinham passagem pela polícia, o que não justifica a violência policial. Normalizar esse tipo de ação porque parte dos mortos teve envolvimento com o crime, é contribuir para uma rotina que não acaba com a criminalidade, que aprofunda a violência e acerta, com muita frequência, a cabeça de uma criança.

João Pedro, de 14 anos, levou um tiro de fuzil na barriga quando estava em casa, no mesmo Complexo do Salgueiro, em maio de 2020, em uma operação policial no ápice da pandemia. Quanto mais violência, mais violência. Não existe outra equação. As autoridades sabem disso. O Rio de Janeiro é um laboratório que prova que operações policiais violentas não combatem a criminalidade. O governador Claudio Castro (PL) é responsável por essa matança sob seu comando.

O Complexo do Salgueiro faz parte da 7a AISP (Área Integrada de Segurança Pública), região de São Gonçalo. É o lugar onde a polícia mais concentra a sua letalidade. Em 2020, 40,95% das mortes violentas na região foram produzidas pela polícia. É bem mais do que a média de todo o estado do Rio de Janeiro: no estado, 28,97% de todas as mortes violentas foram produzidas pela polícia.

Trata-se de um profundo desrespeito por essas mulheres, quase todas negras, que nunca param de velar seus jovens mortos. Não é política de segurança pública. É mais violência.

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