Um ato de resistência

Conceição Evaristo revelou que chora ao escrever determinados textos

Escrever é uma maneira de sangrar. A sentença escolhida pela escritora Conceição Evaristo para concluir o conto “A gente combinamos de não morrer”, do livro “Olhos d’Água” (editora Pallas), serviu também para que essa gigante da literatura brasileira —a quem tive a oportunidade de entrevistar no programa Roda Viva, da TV Cultura, que foi ao ar na segunda passada (6)— revelasse que chora ao escrever determinados textos. “É uma dor…”

Quem conhece a obra de Conceição entende bem o porquê. Dedicada à literatura negra, seus livros contêm registros do cotidiano daqueles brasileiros que enfrentam um dia a dia marcado pelo preconceito, pelo desamparo, pela miséria e pela fome. Tudo é relatado a partir do que ela chama de escrevivência.

Talento reconhecido nacional e internacionalmente, com publicações em cinco idiomas (português, inglês, francês, árabe e espanhol), Conceição Evaristo sabe como ninguém que a escrita é um ato de resistência. E entende que, no caso das mulheres negras, a palavra revela uma trajetória da comunidade ligada à diáspora africana que a história como ciência por vezes despreza.

“Vejo a escrita inclusive como ato de nossa fundação como pessoas na nacionalidade brasileira”, disse ela durante o Roda Viva. Nesse contexto, para pretos e pardos, escrever e publicar torna-se um ato político. “Hoje nós negros incomodamos muito mais.”

Faz sentido considerando o silenciamento imposto a vozes negras durante séculos. Sob a perspectiva histórica, pode-se dizer que escrever é tão importante que o primeiro embate entre colonizador e colonizado foi o linguístico, como observou Conceição numa outra ocasião.

O registro por escrito, além de importante, é uma excelente forma de externalizar e lidar com traumas que perpassam gerações e causam danos psicológicos tão profundos quanto as feridas abertas pelos castigos físicos de outrora.

Salve Conceição Evaristo, uma referência e uma inspiração!


Ana Cristina Rosa

Jornalista especializada em comunicação pública e coordenadora da Associação Brasileira de Comunicação Pública (ABCPÚBLICA) – Seção Distrito Federal.

+ sobre o tema

Racismo científico, definindo humanidade de negras e negros

Esse artigo foi pensado para iniciar um diálogo sobre...

“Pérola Negra: Ruth de Souza” traça panorama da carreira da atriz

Mostra que entra em cartaz no CCBB traz 25...

Mylene Pereira Ramos: a juíza que defende maior diversidade na magistratura

“Em nossa sociedade, fatores como raça e condição social,...

para lembrar

Caixa Econômica Federal tira do ar anúncio que retrata Machado de Assis como um homem branco

A Caixa Econômica Federal suspendeu a veiculação de uma...

A questão negra em Machado de Assis

Em 2003 é aprovada na Constituição Brasileira a lei...

5 livros para compreender a miséria humana

Autores como Fiódor Dostoievski, José Saramago, Graciliano Ramos, Victor...

Curso de LITERATURA NEGRO-BRASILEIRA

LITERATURA NEGRO-BRASILEIRA Prof. Dr. Luiz Silva (Cuti)...
spot_imgspot_img

Crianças do Complexo da Maré relatam violência policial

“Um dia deu correria durante uma festa, minha amiga caiu no chão, eu levantei ela pelo cabelo. Depois a gente riu e depois a...

Em autobiografia, Martinho da Vila relata histórias de vida e de música

"Martinho da Vila" é o título do livro autobiográfico de um dos mais versáteis artistas da cultura popular brasileira. Sambista, cantor, compositor, contador de...

“Dispositivo de Racialidade”: O trabalho imensurável de Sueli Carneiro

Sueli Carneiro é um nome que deveria dispensar apresentações. Filósofa e ativista do movimento negro — tendo cofundado o Geledés – Instituto da Mulher Negra,...
-+=