Um freio à precarização

Se escancarou mazelas socioeconômicas tão antigas quanto toleradas no Brasil, a pandemia da Covid-19 tem igualmente precipitado reações à série de abusos. É dessa lavra a articulação que, diante da escalada de homicídios decorrentes de operações policiais no Rio de Janeiro, arrancou do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), a liminar proibindo intervenções enquanto durar a calamidade na saúde. Também emergiu com vigor o enfrentamento ao racismo pela cobrança de ações objetivas de construção de equidade. Da mobilização virtual de estudantes brotou o adiamento do Enem. Esta semana, foi a vez de motofretistas e entregadores se insurgirem contra as más condições de trabalho e remuneração a que são submetidos por empresas de aplicativos. Inédita, a paralisação alcançou as principais capitais do país (São Paulo à frente) e, se teve apoio de organizações sindicais e políticas, não foi delas monopólio.

Os números sobre a categoria variam. O Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho (Cesit-Unicamp) estimou em 600 mil o total de ocupados em todo o país. Mais de 70% são homens jovens, de 25 a 35 anos, segundo a economista Hildete Pereira de Mello, da UFF. O IBGE, na Pnad Covid, pesquisa dedicada a acompanhar os efeitos da pandemia no mercado de trabalho, chegou a 917,6 mil motoboys e entregadores. Praticamente metade (49,5%) vive em lares beneficiados pelo auxílio emergencial, o programa de transferência de renda criado às pressas para aplacar a vulnerabilidade social decorrente da crise sanitária.

As informações confirmam a percepção de que, nos últimos meses, cresceram tanto a demanda por serviços de entrega quanto a oferta de trabalhadores e, com ela, a precarização das condições de trabalho, a jornada extenuante e o estrangulamento da renda. Saulo Benicio, de 28 anos, morador de Nilópolis, começou a trabalhar como entregador no início deste ano. Na ocupação buscava remuneração digna e horário flexível, que pudesse combinar com o início do curso de História, na Uerj. Com a pandemia, se viu exposto ao risco da doença, com jornada crescente e renda cadente: “Num bom dia, a gente trabalha dez horas para ganhar R$ 130, assumindo todos os custos. O movimento foi para garantir o mínimo: equipamento de proteção, seguro, auxílio-doença, espaços físicos com banheiro e área de alimentação, pagamento mínimo, aumento do valor por quilômetro rodado”.

O #brequedosapps, no 1º de julho, nasceu da indignação compartilhada pela mesma tecnologia que garante o ganha-pão, sublinha a procuradora Valdirene Silva de Assis, do Ministério Público do Trabalho. “São trabalhadores dispersos mas com um elo comum, a conectividade, dessa vez usada para reivindicar direitos. Cabe ao poder público (MPT, Judiciário e Legislativo) promover os ajustes necessários para que sigam exercendo o trabalho, que se mostrou essencial à sociedade, em condições dignas”, resume. Em abril, o MPT-SP conseguiu na primeira instância liminar determinando a duas plataformas digitais fornecimento de álcool gel, água potável, espaço para higienização de equipamentos e assistência de um salário mínimo a entregadores em grupos de risco ou diagnosticados com a Covid-19. A decisão foi cassada dias depois pelo Tribunal Regional do Trabalho.

O par de ações civis públicas segue em tramitação. Ainda que a Justiça hesite em assegurar direitos mínimos a trabalhadores não celetistas, empresas de aplicativos podem ter de rever condições contratuais para proteger a reputação. Os entregadores conseguiram engajar restaurantes e consumidores no movimento. Fabio Malini, pesquisador em ciências de dados, identificou mais de 600 mil tuítes sobre a paralisação num período de 24 horas, até a tarde de anteontem. Os cinco principais aplicativos de delivery tiveram o pior dia de avaliação desde 2012, segundo o site Appbot, informou O GLOBO.

“Houve uma explosão que mostrou, de um lado, a capacidade de mobilização de um grupo que se percebeu como classe explorada. Por outro lado, pôs esses aplicativos no radar da sociedade de forma crítica”, analisa Leonardo Sakamoto, cientista político e professor da PUC-SP. O movimento dos entregadores trouxe novas reflexões sobre o mercado de trabalho no século XXI, continua: “É uma mão de obra que reivindica direitos, mas não necessariamente cobra vínculo”. Trata-se de impor um freio à precarização, de pavimentar a dignidade.

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