Um (singelo) tributo a Luiz Gama

Não sou eu graduado em jurisprudência, e jamais frequentei academias. Ouso, porém, pensar que, para saber alguma coisa de direito não é preciso ser ou ter sido acadêmico. Além do que sou escrupuloso e não costumo intrometer-me de abelhudo em questões jurídicas, sem que haja feito prévio estudo de seus fundamentos. Do pouco que li relativamente a esta matéria, colijo que as enérgicas negações opostas às petições que apresentei, em meu nome e no próprio detido, são inteiramente contrárias aos princípios de legislação criminal e penal aceitos e pregados pelos mestres da ciência.

(Luiz Gama, 1869).

Neste 21 de junho, dia do aniversário de Luiz Gama (mesmo dia do aniversário de Machado de Assis), apresentamos algumas reflexões que o tomam como inquestionável parâmetro para pensarmos no universo dos possíveis como forma de construção de uma episteme efetivamente plural – tema caro à educação e, particularmente, aos debates em torno da Lei 10.639/03. O fio condutor aqui adotado é a decisão da OAB em considerá-lo referência para a prática da advocacia pro bono.

A fausta notícia de que a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) adotou a experiência do Luiz Gama jurista como prática modelar para o exercício da advocacia pro bono reabre as possibilidades de se dizer mais sobre esse grande vulto da história do país. Costumeiramente, tesouros se prestam a explorações, mas há que se frisar que Luiz Gama é um tesouro guardado e não escondido. Como lembra a professora doutora Lígia Ferreira, especialista na obra do filho de Luiza Mahin, essa bela figura humana se pensou e dimensionou, com justeza, o seu papel na sociedade. Em suma, Luiz Gama foi um homem que se deu a ver. Se, como disse o escritor mexicano Carlos Fuentes, em A morte de Artemiro Cruz, “nunca haverá tempo para a última palavra”, existe sempre um infinitamente acumulado quando o que está em causa é a vida e a obra de um dos mais importantes nomes da cena política brasileira de todos os tempos.

A escolha da OAB não poderia ser mais acertada: Luiz Gama prestava serviços gratuitos em defesa dos seus clientes, em sua maioria escravizados e pobres, conforme ele declarava: “saí para o foro e para a tribuna, onde ganho o pão para mim e para os meus, que são todos os pobres, todos os infelizes; e para os míseros escravos que, em número superior a 500, tenho arrancado às garras do crime.” 1

No dia do aniversário deste símbolo admirável (mesma data de nascimento de Machado de Assis, uma conspiração de altíssimo nível das deusas e deuses), qual a imagem que dele podemos (re)projetar? Como avaliar o valor de sua obra, com inegável estatuto enciclopédico? É preciso que esbocemos um retrato global de um homem que lançou um olhar lúcido sobre o mundo. Nada de aprisioná-lo em clichês, petrificá-lo nesta ou naquela especialidade. Decididamente, Luiz Gama tornou-se paradigma de personagem monumental, com múltiplas vocações.

Às vezes, movidos (as) por uma ânsia comum em afoitos(as) exploradores(as) de um tesouro incomensurável, ofertamos ao público pedaços (sem dúvida, ricos) da figura-mosaico de  Luiz Gama: alguns exploram os seus textos nos jornais para batizá-lo como jornalista; outros o enxergam como referência no campo da literatura; terceiros apontam aqui e ali sua habilidade no campo do Direito; alhures se fala de sua requintada oralidade… Carecemos de vê-lo, a um só tempo, em suas miríades de dobras, por isso se faz necessário se criar focos simultâneos para dimensionar a sua estatura.

A propósito, o século XIX foi pródigo na circulação de mulheres e homens negros de bela escrita e com pensamento atilado, mentes brilhantes, intelectuais de proa profundamente engajados no projeto político da emancipação do país. A pesquisadora Lígia Ferreira nos lembra do quarteto negro do abolicionismo: Ferreira de Menezes (1845-1881), José do Patrocínio (1858-1905), André Rebouças (1838-1898) e o próprio Luiz Gama (1830-1882). Por meio da literatura, do jornalismo e da política, que estavam umbilicalmente ligados naquela época, esses homens avançaram considerações contundentes, por vezes inéditas, sobre vários temas, em especial a escravidão e a República.

Referências mudas na paisagem do conhecimento

A despeito das recentes explorações em torno de perfis como o de Luiz Gama, uma rápida mirada sobre o painel das “figuras ilustres”, desenhado pelo discurso oficial, nos possibilita observar que esses nomes aparecem, frequentemente, como sombra do não- declarado. Inescapavelmente, a pergunta que não quer calar: qual o mecanismo, a mágica, o procedimento que fez sumir essas e outras figuras do nosso horizonte de referências? Como nomes de personalidades negras puderam desaparecer dos sistemas educativos? De que forma foi possível que escolas e universidades falassem (e continuem assim fazendo) em política, direito, jornalismo, literatura e outros que tais sem mencionar o papel fundante de Luiz Gama, sem apontar o seu papel na formulação de um discurso fundador que pensou um país republicano?

Busquemos amparo em outros mundos. O polêmico filósofo Michel Onfray, conhecido mundialmente por ser um detrator de Freud e da psicanálise, tece críticas acerbas à galeria dos nomes que figuram como referências inquestionáveis do Século das Luzes. Destaca o autor que tal galeria foi forjada às custas do sacrifício (invisibilidade) de tantos outros nomes (autenticamente iluministas). Segundo Onfray, para construir “esse jardim tão lindo, com alamedas limpinhas e arbustos bem cortados, foi preciso cortar muito, podar, talhar”… Troque-se os personagens de Onfray pelos homens e mulheres negros do século XIX e dos tempos contemporâneos, o método de supressão será o mesmo: cortou-se muito, podou-se incessantemente, talhou-se com esmero para que as rosas do jardim do conhecimento brasileiro pudessem ser apresentadas sem os créditos das sementes advindas do pensamento negro.

Universo dos possíveis, uma outra episteme: na senda de Luiz Gama

Para onde essa constatação nos leva? Tais procedimentos de exclusão incidem, como se vê, nas discussões em torno da Lei 10.639/03.2 Insiste-se em dizer que a Lei não é implementada, fundamentalmente, por conta de dois fatores: escassez de material didático e formação precária ou inexistente dos(as) professores(as) relativa aos conteúdos exigidos pela Lei (história da África e afro-brasileira). A insistência nessas duas variáveis como fonte do alegado imobilismo para a efetivação da 10.639 nos faz tomar o efeito como causa. Os impasses e dificuldades em torno da mencionada Lei, a despeito dos esforços de educadoras e educadores  e de promissores resultados, residem num problema de episteme, donde entendemos episteme, abreviadamente, como o ato de conhecer o objeto e ser capaz de comunicá-lo ao outro. Episteme supõe universalidade e transtemporalidade. Mas o que Luiz Gama tem a ver com esse desvio aparentemente descabido?

Pelo que se viu, o nosso homenageado possui força diamantina para fundar outra episteme, pois assenta-se numa universalidade e transtemporalidade. Reconhecê-lo como uma grande figura do século XIX, já é um passo essencial, mas não o suficiente para devolver-lhe o papel que exerceu nos sistemas de pensamento. Mais do que citações no campo da literatura, ou reconhecimentos na área jornalística, é preciso que Luiz Gama seja inserido nos currículos escolares a partir dessa perspectiva universal e transtemporal, com potência para reinaugurar toda a humanidade e ampliar o universo dos possíveis.

Muitas vezes, em nossas experiências no campo de formação de docentes para a “aplicação” (o uso do termo me provoca alergia) da Lei 10.639 ouvimos professores(as) relatarem entusiasticamente as conquistas nesse expediente, medidas pela adoção de conteúdo X ou Y. Avaliamos que se tais conquistas não forem acompanhadas de deslocamentos no campo da episteme, o racismo, que opera negando a história do outro, continuará triunfando. Habitualmente, estamos imersos numa matriz discursiva, o que nos impede, frequentemente, de ver os possíveis; os possíveis não estão consolidados como saberes de cada época. Normalmente esse possível não tem espaço de fala, porque há um contorno que conspira, muitas vezes sem saber que conspira.

Para variar, vamos de Michel Foucault. De acordo com o filósofo, cada episteme produz sua forma específica de vontade de saber e vontade de verdade. Afirma ele que não basta apenas ser verdadeiro, tem que estar no verdadeiro de cada época: “Galileu, Mendel diziam a verdade, mas não estavam ‘no verdadeiro’ do discurso de sua época” (Foucault, 1996: 35). A filósofa e ativista do feminismo negro, Sueli Carneiro, na senda de Foucault e do sociólogo Boaventura de Sousa Santos, fala-nos de epistemicídio (expressão cunhada pelo último) para trazer à baila a morte e o asfixiamento dos saberes e conhecimentos da matriz africana e de sua descendência.

Retomando o fio condutor deste artigo, o gesto que reconhece Luiz Gama como um jurista que inaugura a advocacia pro bono leva-nos a ponderar que algo mudou no sistema de pensamento jurídico. Mais do que isso: leva-nos para além das fronteiras do Direito. O verdadeiro sobre Luiz Gama adentrou a nossa época, podemos dizer. Se as referências caladas impedem as devidas reverências, é preciso referenciar para reverenciar. Ao fazê-lo, no caso de Luiz Gama, é possível, como dissemos, reinaugurar a humanidade inteira, suscitando o advento de uma episteme plural.

Eis aí uma bela plataforma política a ser visada nas discussões que envolvem a Lei 10.639, a fim de que as reivindicações que a originou formuladas por pensadores e ativistas do movimento negro em épocas remotas não sejam esvaziadas de sua complexidade política, epistemológica, e reduzidas apenas à cantilena da ausência de material de didático e da formação de professores. Luiz Gama é um farol para nos orientar e encorajar a “sermos realistas e a pedirmos o impossível”. Seguindo seus passos, quem sabe um dia possamos avaliar os desdobramentos da Lei 10.639 e afirmar, sem constrangimentos: É disso que estamos falando!

PS: Dedico este artigo a dois jovens advogados: Janaine Ventura Salviano e Roberto Luiz Bruzaroski embalada pela crença de que podem ser “fazedores de mundos”, por meio da concepção de Direito de Luiz Gama.


As citações de Luiz Gama são extraídas do artigo De escravo a cidadão: Luiz Gama, voz negra no abolicionismo, de Ligia Ferreira que consta do recém-lançado livro Tornando-se livre: agentes históricos e lutas sociais no processo de abolição. Machado, Maria Helena P. T. & Castilho, Celso Thomas. Ed. Edusp, 2015.

2 Altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9394/1996), e inclui no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”. Os conteúdos devem ser ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.


** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

 

 

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