Um trabalho pioneiro sobre gênero e escolarização no Brasil

Um tema recorrente neste blog é a interface entre gênero e educação. O conhecimento que se tem atualmente sobre a temática é fruto de inúmeras pesquisas e estudos que, desde as últimas décadas, tentam desvendar as relações de gênero nas creches, escolas e universidades pelo país. No levantamento da produção brasileira, realizado por Marília Carvalho (2012), pode-se ter uma noção do que tem sido pensado, escrito e investigado no tocante a gênero e escolarização.

Por Adriano Senkevics

iStockphoto

Tomando o período de 1993 a 2007, o primeiro trabalho encontrado foi a tese de doutorado de Gilda Olinto do Vale Silva, intitulada Reprodução de classe e reprodução de gênero através da cultura e defendida pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, no ano de 1993. Esse pode ser considerado um dos trabalhos pioneiros sobre gênero e desempenho escolar no Brasil. Além de ter sido um dos primeiros estudos realizados – quiçá o primeiro –, o doutorado de Silva (1993), que tomou como objeto de pesquisa estudantes do Colégio Pedro II (Rio de Janeiro), antecipou várias questões que nos indagam até a atualidade.

Em uma época em que pouco se falava do sucesso escolar de meninas (leia aqui), a autora já denunciava que “no Brasil, pertencer ao gênero feminino aumenta as chances da pessoa ir para a escola e nela permanecer por mais tempo” (SILVA, 1993, p. 75, grifos da autora). Baseada no influente trabalho do sociólogo francês Pierre Bourdieu, Silva toma emprestado o conceito de “capital cultural” para concluir que, a fim de garantir sua posição de classe, as mulheres precisariam, mais que os homens, de capital cultural.

 

Trocando em miúdos, a autora já esboçava o descompasso entre as desigualdades educacionais e as disparidades no mercado de trabalho. Ela reconhece que as mulheres precisam se esforçar mais, se dedicar mais e estudar mais, para galgarem os mesmos patamares de sucesso que os homens. Na visão da autora, isso explicaria por que o desempenho escolar das meninas seria superior ao dos seus colegas do sexo masculino: elas teriam que ser melhores na escola para compensar desigualdades que lhes afetam em outras esferas.

Nesse sentido, Silva (1993) nega explicações vitimistas que atribuem o sucesso escolar das meninas a uma suposta submissão, obediência e passividade femininas. Em sua opinião, essa hipótese baseia-se na “síndrome da situação subordinada da mulher” (1993, p. 82), isto é, a mania de que em todos os indicadores sociais as mulheres teriam que estar em posição de inferioridade: mesmo quando vão bem na escola, elas o fariam pela porta dos fundos, digamos, não por serem inteligentes e esforçadas, senão por serem passivas e submissas.

Pelo contrário, a autora enfatiza que o sucesso escolar das meninas derivaria de seu próprio esforço, com vistas à transformação social. Segundo sua tese, as razões para esse sucesso seriam decorrência das atividades extracurriculares escolhidas pelas moças – que privilegiariam a cultura letrada; uma rotina de estudos mais estruturada; e também a sua autonomia e criatividade, percebida pela preferência a redações livres e a rejeição a testes e exercícios dirigidos.

Ainda que datadas, as conclusões de Silva (1993) são absolutamente válidas até hoje. “Como será possível perceber”, escreve Carvalho (2012, p. 150), “ainda são extremamente pertinentes as críticas de Silva (1993) à fragilidade teórica das interpretações do sucesso escolar das mulheres baseadas em sua situação de subordinação e numa visão da cultura escolar como feminina e, por isso, valorizadora estritamente da obediência e da submissão”.

Para concluir, ressalta-se que trazer à tona o protagonismo feminino contribui para que possamos compreender porque, apesar da discriminação sexista e do machismo (leia aqui), as mulheres conseguem se destacar no seu percurso de escolarização. É preciso mais do que alguns chavões para responder essa pergunta. E talvez a resposta comece ser respondida quando as motivações, esforços e dificuldades das garotas bem-sucedidas sejam trazidos para o primeiro plano. Em alguma medida, Silva (1993) abriu as portas para isso.

Fonte: Ensaios de Gênero

+ sobre o tema

Crianças criam suas próprias bonecas da Rey, personagem de “Star Wars: O Despertar da Força”

Assim como aconteceu com a Viúva Negra e Gamora, super-heroínas de “Os...

Sindicato cria disque denúncia para combater trabalho infantil e exploração sexual de crianças

Sindicato cria disque denúncia para combater trabalho infantil e...

Feminismo não é o contrário do machismo por Mario Sergio Cortella

Mario Sergio Cortella, um dos intelectuais mais respeitados do...

Nota pública sobre a aprovação da Lei 12696/12

  PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA SECRETARIA DE DIREITOS HUMANOS   NOTA PÚBLICA DO CONANDA Sobre...

para lembrar

A “safada” que “abandonou” seu bebê

Como o mito da maternidade demoniza as mulheres ainda...

Carnaval do Rio terá a primeira mulher como mestre de bateria

Ela mede 1,62m e pesa 50kg, mas vira uma...

Livro Popular – incentivar leitura e ampliar investimentos são prioridades para 2012

Cultura: incentivar leitura e ampliar investimentos são prioridades para...

Por que as mulheres vão ao banheiro juntas

As mulheres vão ao banheiro juntas. Não importa que...
spot_imgspot_img

Geledés participa do I Colóquio Iberoamericano sobre política e gestão educacional

O Colóquio constou da programação do XXXI Simpósio Brasileiro da ANPAE (Associação Nacional de Política e Administração da Educação), realizado na primeira semana de...

A lei 10.639/2003 no contexto da geografia escolar e a importância do compromisso antirracista

O Brasil durante a Diáspora africana recebeu em seu território cerca de 4 milhões de pessoas africanas escravizadas (IBGE, 2000). Refletir sobre a formação...

Aluna ganha prêmio ao investigar racismo na história dos dicionários

Os dicionários nem sempre são ferramentas imparciais e isentas, como imaginado. A estudante do 3º ano do ensino médio Franciele de Souza Meira, de...
-+=