“Uma CPI para nada” – uma análise sobre a da CPI de Homicídios de Jovens Negros e Pobres

Sessão da CPI sobre o Extermínio da Juventude Negra em Brasília / Lena Azevedo

no Justiça Global

Veja abaixo a análise feita por Lena Azevendo, jornalista e pesquisadora da área de Violência Institucional e Segurança Pública da Justiça Global, sobre a CPI de Homicídios de Jovens Negros e Pobres:

“Uma CPI para nada”

Há muito tempo as Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) perderam o sentido de ser, seja por serem criadas como instrumento de disputas políticas entre partidos de oposição e governo, ou ainda pela ineficácia de suas recomendações. É verdade que algumas conseguiram realizar diagnósticos profundos e ter conseqüências imediatas, sobretudo para os setores atingidos, como, por exemplo, a CPMI que investigou a Violência contra a Mulher, em 2012. Mas é fato que os resultados da maioria são questionáveis. Entretanto, há situações em que CPIs além de não investigarem o que se dispuseram, servem para invizibilizar e mascarar ainda mais as temáticas levantadas. Esse é o caso da CPI de Homicídios de Jovens Negros e Pobres, que teve seu relatório aprovado em 15 de julho.

O texto se inicia com um poema chamado Genocídio, de Bebeth Cris, o que poderia indicar um bom começo, mas o que se vê a seguir é a ausência total de comprometimento. Tanto o presidente da CPI, Reinaldo Lopes (PT-MG), quanto à relatora, Rosangela Gomes (PRB/RJ), insistiram, no dia da apreciação do trabalho final, em “genocídio simbólico” e “matança simbólica” de negros. A sustentação teórica do relatório está baseada em pensadores brancos, dentre eles Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes, Sartre e Fernando Henrique Cardoso. A única negra citada no trabalho foi a advogada Ana Luiza Flauzina. De forma sutil, também foi lembrado o trabalho de Abdias do Nascimento.

O problema em selecionar cientistas brancos não reside na qualidade da obra, mas pelo fato do relatório ignorar solenemente todo conhecimento produzido por pesquisadoras e pesquisadores negras/os. A isso, dá-se o nome de epistemicídio. Como políticos e assessoria querem tratar o genocídio sem tentar ao menos conhecer a obra de Ashley Mbembe e o conceito de necropolítica, por exemplo? Como esqueceram os trabalhos que debatem questões raciais de Angela Davis, Maulana Karenga, Carlos Moore, Christen Smith, Cornel West, de brasileiras e brasileiros, como Cida Bento, Luiza Bairros, Wania Santana, Andreia Beatriz, Valdélio Silva, Hamilton Borges, Sueli Carneiro e Edson Cardoso, que inclusive falou na comissão? Esses são apenas alguns nomes e a relatoria nem precisaria ler a obra de todos, mas esperava-se que pelo menos alguns fossem utilizados como referências, que se valorizasse a produção científica, o debate instalado a partir dos próprios negros.

Em vez de encarar de frente o genocídio do povo negro, procurar entender por que eram negras 77% das 56.337 pessoas assassinadas em 2012 (Mapa da Violência 2014), a CPI girou em torno da ausência de políticas públicas do Estado, com foco, sobretudo, nas áreas de educação e saúde. Não compreendeu (ou não quis, já que muitos debatedores falaram sobre isso) que o racismo é estruturante (e não apenas institucional) no país e que ele sinaliza não só quem são os que também devem ser excluídos, mas também presos e assassinados. A incompreensão sobre o que é genocídio e o racismo levou a uma sucessão de erros interpretativos, a uma análise equivocada sobre o tema.

O relatório da CPI insere trechos inteiros de pesquisas, dentre elas o Mapa da Violência 2014, em que enumera três fatores para explicar os motivos de assassinatos de brancos terem diminuído, enquanto o de negros aumentou 111%, entre 2002 e 2012. Pior do que copiar parágrafos da referida pesquisa é não fazer qualquer crítica aos argumentos nela colocados. Segundo o autor do estudo, o primeiro fator que explica o contexto de aumento de mortes de negros diz respeito à crescente privatização da segurança: “Em teoria, os setores e áreas mais abastadas, geralmente brancos, têm uma dupla segurança e os menos abastados, das periferias, preferentemente negros, têm que se contentar com o mínimo de segurança que o Estado oferece. Um segundo fator adiciona-se ao anterior. A segurança, a saúde, a educação, etc. são áreas que formam parte do jogo político-eleitoral e da disputa partidária”. Portanto, segundo essa leitura, a cobertura da segurança prioriza espaços de acordo com a visibilidade política, o impacto na opinião pública, principalmente na mídia.

O problema não é constatar que a segurança estatal prioriza áreas de classe média e alta e com maioria de habitantes brancos e maior visibilidade na imprensa, mas é reproduzir uma avaliação temerária incluída no Mapa da Violência. Para o coordenador da pesquisa (isso é textual), negros são mortos por não poderem contratar segurança privada e terem que se contentar com a precária, oferecida pelo estado, como sugere o parágrafo acima reproduzido no relatório. É claro que o autor insere ainda a discussão sobre a naturalização da violência contra negros e pobres, mas o fato de concluir que o problema é a segurança estatal e “mínima” nas periferias explicaria o extermínio, vai na direção oposta às muitas teses levantadas por pesquisadoras e pesquisadores negros: não é a ausência do estado que justifica o genocídio, mas sim a sua cultura racista, neocolonialista que mantém e amplia cada ano mais o número de vítimas negras.

Portanto, ainda que a palavra genocídio tenha surgido no relatório, manteve-se a argumentação branca de que é preciso mais polícia para garantir a vida, quando a história mostra o contrário, de que a militarização de territórios (e aí não se trata apenas da polícia militar, mas de todo um conceito executado pelo Estado, de confinamento e eliminação de pessoas) só colabora para aumentar significativamente as mortes de negros.

Nessa linha de raciocínio torto da CPI, igualmente curioso é o trecho da página 41, em que a relatoria cita Florestan Fernandes fora do contexto e ainda recorre, mesmo que inconscientemente a Gilberto Freyre e a sua “metarraça”, ou, segundo seu conceito de democracia racial, do encontro das três raças que fundam a identidade brasileira, tese derrubada há décadas e rejeitada nas deliberações dos congressos negros, na Marcha de Brasília, de 1995, nas declarações de conferência mundiais contra o racismo, como a de Durban (2001). Diz o texto da CPI:

“Não se deve interpretar nossa argumentação, como açodadamente pode-se pensar, como aquela tendente a gerar conflito ou a acirrar ânimos. Outrossim, não se quer, aqui, ressuscitar a questão da raça como fator de desagregação, criando-se uma nação dentro da nação, ao sabor de um multiculturalismo, descuidadamente, internalizado. Povo só há um, o povo brasileiro.”

Difícil saber o que o relatório quis dizer com isso, já que parece uma colagem aleatória de trabalhos acadêmicos sem qualquer conhecimento do tema. Florestan Fernandes trata da desobediência civil na esfera universitária (ou academia). Não há nada no texto que remeta a questão racial. Portanto, parece um tanto quanto forçada e sem qualquer lógica a citação do sociólogo. Entende-se depois, na fala final do presidente da CPI, Reginaldo Lopes, qual o motivo de inserir Florestan e FHC como sustentação do argumento sobre o racismo no relatório. Trata-se de uma tentativa de conciliar dois pensamentos e práticas políticas (Florestan era ligado ao PT e FHC fundador do PDSB), ainda que isso significasse uma derrota total do objetivo principal da comissão, que era investigar o extermínio, o genocídio do povo negro.

CONSENSOS E RACISMO

“Surge nessa Legislatura a grande convergência de minoria e governo, de oposição e a do meu partido (PT). Talvez essa convergência possa sinalizar outras em favor de uma nova agenda para o Brasil. Quero simbolizar nessa convergência, que no passado tinha o petista e o tucano. A partir da definição simbólica sobre genocídio, de FHC e de Florestan Fernandes, em nome dos dois, essa CPI conseguiu aprovar o texto de sugestão de proposições legislativas e de emendas constitucionais, e também a favor do nosso povo negro, que é vítima de exclusão há mais de 500 anos. Que a convergência signifique avanços, que a gente possa fazer uma reparação de danos. Em 1995, o governo federal, através do então presidente Fernando Henrique, assumiu que o Brasil era um país racista e hoje o Parlamento também conclui na existência de um racismo institucionalizado e também reconhece esse genocídio simbólico de nossos jovens negros e pobres”, defendeu Lopes em sua fala final.

Há outros inúmeros problemas no relatório, como ter retirado, por pressão de evangélicos, partes que tratavam da orientação sexual e identidade de gênero, o que gerou a saída do deputado Jean Wyllys da CPI, por total discordância.

Igualmente revoltante é reduzir a luta por justiça das mães, mulheres familiares de vítimas da violência ao “fortalecimento da família e reparação de danos”. Em dado trecho, o relatório diz o seguinte:

“Desde o início dos trabalhos da CPI, ficou evidente que há fatores de proteção bastante importantes que ajudam a prevenir a ocorrência da violência. Entre esses fatores encontra-se o fortalecimento da família”. Na página 67, há a seguinte constatação:

“A partir desses depoimentos vemos que é expressa a preocupação com as viúvas dos jovens negros mortos, o que ressalta a importância do planejamento familiar (grifo nosso), no sentido de que as políticas públicas ofereçam apoio para que essas famílias desarticuladas pela brutalidade da violência possam permanecer unidas, fortes e recebam ajuda suficiente para que suas necessidades sejam atendidas após a ocorrência da perda de seu provedor.”

Uma consulta à pesquisa do IBGE “Estatísticas de Gênero – Uma análise dos resultados do Censo Demográfico 2010” mostra que a participação das mulheres como responsáveis em áreas urbanas atinge 46,4%, superando a média nacional quando analisados os domicílios com menor renda. A questão do planejamento familiar parece ter sido incluída para satisfazer uma parcela religiosa da comissão, já que faz muito tempo que as mulheres não só chefiam parte dos lares brasileiros, sobretudo na periferia. São elas que encaram o machismo no seu dia a dia e garantem não só o sustento da família, mas como o direito sobre seu próprio corpo. A reprodução para os negros é um ato de coragem e enfrentamento ao racismo e ao genocídio.

Extremamente grave é o fato do presidente da CPI ter declarado como documentos ultrassecretos (sem acesso ao público por 25 anos) depoimentos de vítimas, segundo ele, quando em sessão fechada nos estados. Em nenhum estado por onde a comissão passou houve sessão fechada. Esse é o primeiro ponto. Portanto, manter declarações de parentes de vítimas sem acesso, invocando o polêmico Ato 45/2012 da Mesa Diretora da Câmara, é semelhante ao recurso usado pelo regime militar (1964-1985) e retificado posteriormente por presidentes civis, de preservar militares acusados de torturas, sequestros e mortes durante o período da ditadura. Esse tipo de recurso, o sigilo, só preserva os acusados. Quanto aos negros, continuarão expostos à morte, com ou sem a revelação de tais depoimentos.

Não se entende também por que a CPI não incluiu os depoimentos das audiências públicas, que, afinal, além de fazer parte do plano de trabalho, traziam informações relevantes prestadas por familiares, militantes de movimentos e estudiosos do tema. Preferiu a CPI insistir em pesquisas amplamente conhecidas e eximir os estados e o governo federal de fornecerem dados da área de segurança pública. Com isso, apenas reprisou argumentos dos autores dessas pesquisas selecionadas. Não teve a capacidade de fazer qualquer diagnóstico da área de segurança pública. Portanto, parece incompatível, por mais bem-intencionadas que sejam as 83 recomendações e as sugestões legislativas, querer dizer como devem agir os poderes executivos federal, estaduais, distrital e municipais, conselhos nacionais do Ministério Público, de Procuradores Gerais, dos Defensores Públicos Gerais, Colégio Permanente de Presidentes de Tribunais de Justiça, Ministério Público e Defensorias estaduais.

Para além da falta de diagnóstico, observa-se um desleixo com os resultados de audiências e pedidos de dados dos estados. Os pedidos de informações sobre estatísticas e investimentos nos governos estaduais não foram respondidos (se foram, ninguém soube, já que não constam nem como anexo do documento). As falas de familiares, militantes e pesquisadores foram deliberadamente retiradas do relatório final. Não constam sequer como apêndice do relatório, e, portanto, não serve nem como peça documental e histórica ou instrumento jurídico. O presidente da CPI resolveu publicar separadamente 10 mil exemplares com os depoimentos de audiências nos estados, um livrinho chamado de separata, para dar uma satisfação aos que se expuseram ao risco de depor numa CPI que julgavam séria. É um descaso injustificável. E isso é o mínimo que se pode dizer.

Com esse quantitativo de equívocos a CPI deu a impressão de que não era para investigar nada. Só queria, de novo, usar as negras e negros como moeda política. Usou a dor do povo negro para buscar a convergência entre “minorias e governo”, “situação e oposição”, como reafirmou o presidente da comissão ao final da votação do relatório. Nada mais racista e genocida do que isso!

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