Universidade Federal do Amazonas cancela cotas na pós

Ufma alega falta de regulamentação e amparo legal para aplicar as reservas de vaga e cancela Lei de Cotas. O Amazonas tem 63 povos indígenas vivendo no estado

A Universidade Federal do Amazonas (Ufam) cancelou no mês de setembro a reserva de vagas para alunos indígenas e negros nos cursos de pós-graduação sob a alegação de que o de regime de cotas não tem amparo legal e nem regulamentação. A decisão, que já vigora para os editais do final deste ano, quando as provas para novos alunos serão realizadas, foi tomada com base no parecer da Procuradoria Federal da instituição. O parecer diz que a “reserva de vagas para ingressos nas universidades federais para autodeclarados pretos, pardos e indígenas só alcançam a graduação como expressamente estabelecido na Lei 12.711, de 29 de dezembro (sic) de 2012”. A Lei 12.711, mais conhecida como Lei de Cotas, na verdade, é de 29 de agosto de 2012.

O pró-reitor de Pesquisa e Pós-graduação (Propesp), Gilson Vieira Monteiro, disse à agência Amazônia Real que a política de Cotas prevista na Lei não é autoaplicável à pós-graduação e que a administração superior da Ufam não entende a reserva de vagas em editais como política de ação afirmativa. Ele disse também que a Ufam está em processo de construção de uma política de ações afirmativas própria e institucionalizada e que, portanto, os programas não podem prever ações isoladas em seus editais, desde a vigência da resolução de 28 de agosto de 2014, que “Disciplina os procedimentos para a Realização dos Exames de Seleção para Ingresso na Pós-graduação Stricto Sensu no âmbito da Universidade Federal do Amazonas”.

Gilson Monteiro disse que uma das propostas será definida por uma comissão presidida pelo pró-reitor de extensão, Frederico Arruda, para que sejam apresentados resultados para Políticas Afirmativas da Ufam, na qual se incluirá indígenas, quilombolas, ribeirinhos, etc. Arruda foi procurado por telefone e por email na última quinta-feira, mas não respondeu, até a conclusão desta matéria, as perguntas enviadas pela reportagem sobre como será o trabalho da comissão e qual a previsão da Política de Ações Afirmativas da Ufam começar a ser implantada, entre outras questões.

Alunos indígenas consideram decisão um retrocesso

Adelson Gonçalves Foto: Elaíze Farias
Adelson Gonçalves Foto: Elaíze Farias

A divulgação da extinção da reserva de vagas para mestrado na Ufam surpreendeu professores e alunos dos programas de pós-graduação nos cursos onde o regime vinha funcionando: Antropologia Social, Sociedade e Cultura da Amazônia e, mais recentemente, História. Professores e alunos ouvidos pela reportagem consideraram a decisão da reitoria da Ufam um “retrocesso”. Uma reação contrária mais efetiva à decisão, contudo, partiu somente de alunos do Colegiado Indígena do Programa de Pós-Graduação de Antropologia Social (PPGAS), que na semana passada ingressaram com um pedido de impugnação do cancelamento da reserva de vagas na própria Propesp. Uma cópia do documento com a impugnação foi enviada ao Ministério Público Federal do Amazonas, solicitando providências.

O indígena da etnia tariano Adelson Gonçalves, advogado e aluno de mestrado em Antropologia Social, disse achar “estranha” a extinção das “ações afirmativas” na Ufam, uma vez que a reserva de vagas está em vigor desde 2011 no curso.

“Extinguir algo que já estava em vigor, sem uma ampla discussão com os interessados, entre eles os corpos docente e discente, associações, organizações indígenas, Ministério Público e outros agentes, alegando ausência de suporte legal, dado que esta temática já tinha sido enfrentada pela Corte Constitucional Brasileira, é no mínimo, retrocesso não somente com o público alvo, os povos indígenas, mas com todo um trabalho que já foi feito. Esta decisão está desalinhada aos princípios da administração pública e muito afeita a conveniências pessoais de responsáveis que têm ojeriza aos indígenas”, disse Gonçalves.

Para Adelson Gonçalves, a alegação da Ufam de que está desenvolvendo uma proposta de políticas afirmativas não é suficiente. “Não é preciso acabar com uma política de reserva de vagas enquanto outra está sendo elaborada”, disse.

O antropólogo João Paulo Barreto, da etnia tukano, disse que o parecer da Procuradoria da Ufam causou surpresa e acabou com a expectativa dos estudantes indígenas que estão dedicados na elaboração de projetos e nas leituras de textos para participar da seleção de forma diferenciada. Barreto, que defendeu sua dissertação em 2013, se manifestou sobre o assunto por meio de um texto enviado à reportagem, que é publicado integralmente em sua coluna.

Cursos com cotas

A reserva de vagas para alunos da pós-graduação existe em diferentes estágios nos cursos de Sociedade e Cultura na Amazônia, Antropologia Social e História.

No Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS), a reserva de vagas existe desde 2011, por meio do edital N. 012/2010, e tem sido bem avaliado pela Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), segundo o coordenador do curso, Sidney Antônio da Silva.

Até 2014, entraram no PPGAS 12 anos alunos indígenas das etnias tukano, tikuna, cambeba, wapichana, piratapuya, macuxi, baré, cocama e tariano pelo regime de cotas. Quatro já foram titulados mestres.

As cotas para alunos indígenas da pós-graduação existe nos cursos de Sociedade e Cultura na Amazônia, Antropologia Social e História | Foto: Ufam
As cotas para alunos indígenas da pós-graduação existe nos cursos de Sociedade e Cultura na Amazônia, Antropologia Social e História | Foto: Ufam

Sidney Antônio da Silva disse que ficou sabendo do fim de reserva de cotas para a pós-graduação quando o edital de seleção para ingresso em 2015 foi enviado, como de praxe, à Propesp para ser analisado. Ele contou que nos anos anteriores não houve referência da Procuradoria em relação à reserva de vagas para indígenas, o que veio acontecer somente em 2014.

“Recebemos a decisão com perplexidade, pois uma política adotada há 4 anos pelo PPGAS, com excelentes resultados, não pode ser interrompida a partir de um embasamento jurídico de alcance limitado. Os dados comprovam isto, pois no período tivemos a titulação de 4 mestres e ainda temos 8 alunos em formação. Em se mantendo esta decisão, a Ufam estaria na contramão das políticas afirmativas já adotadas por outras universidades federais do país”, disse Silva.

A coordenadora do Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia, Marilene Correa, também se mostrou surpresa com a extinção das cotas, mas disse que teve que cumprir a medida, pois se trata de uma decisão da Procuradoria Federal da Ufam.

“Considero um retrocesso porque as reservas de vagas na pós-graduação da Ufam estavam além do que diz a Lei de Cotas, que está mais atrasada do que a realidade. As reservas para alunos indígenas são importantes porque ampliam a educação científica para que eles estudem suas próprias questões. Há vários temas que são desafios para eles e isso ajuda a ampliar sua interlocução com o desenvolvimento científico”.

Segundo Marilene Correa, o programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia recebe alunos indígenas desde 1998, mas foi em 2008 que a reserva de cotas foi criada como política afirmativa, regulamentada em edital. Ela diz que em torno de 30 alunos indígenas já se formaram no programa.

O curso de História estabeleceu a reserva de vagas em seu processo seletivo em 2013, para ingresso em 2014. “A Ufam, enquanto instituição superior, por ser pioneira e centenária no país, já deveria ter amadurecido há muito tempo a política afirmativa através da Lei de Cotas. Foi uma medida totalmente incabível e absurda, que desrespeita o direito desses alunos de terem suas vagas reservadas. A ideia seria ampliar esse número de vagas, invés de acabar”, disse a aluna de mestrado de História, a indígena Laiana Santos, da etnia wapichana. Para Laiana, as políticas afirmativas através da Lei de Cotas são relevantes para alcançar o avanço ao processo de inclusão social.

A professora do curso de História, Patricia Sampaio, orientadora de Laiana Santos e Juarez Silva, que entrou na cota para negros, disse que as cotas étnico-raciais são uma estratégia eficaz no sentido de fazer reverter o quadro de exclusão de pretos e pardos na pós-graduação. Ela criticou a decisão da Ufam. “O caminho que a Ufam tomou vai na contramão de todo o processo de construção das políticas de ação afirmativa e inclusão social. O efeito é grave. Mesmo que a decisão seja revertida, sempre haverá esta seleção que se perdeu; a seleção onde as cotas foram proibidas, consideradas ilegais”, disse.

Lei de Cotas

Em resposta aos questionamentos sobre o funcionamento da Lei de Cotas na Ufam, a assessoria de imprensa da instituição informou que o Departamento de Registro Acadêmico começou a implantar essa política a partir de 2013.

Segundo a assessoria, as vagas para a Lei de Cotas na Universidade estão distribuídas da seguinte maneira: vagas para pretos, pardos e indígenas, de renda familiar mensal per capita menor que 1,5 salário; vagas para pretos, pardos e indígenas de renda maior que 1,5 salário; demais vagas (egressos de escolas públicas que não se declararam pretos, pardos ou indígenas) – renda menor que 1,5 salário e demais vagas – renda maior que 1,5 salário.

A assessoria informa que no ano de 2013 foram oferecidas 802 vagas para a Lei de Cotas, sendo 436 vagas para PPI (pretos, pardos e indígenas), de renda menor que 1,5 salário; 366 Vagas para PPI de renda maior que 1,5 salário; 0 para demais vagas – renda menor que 1,5 salário e 0 para demais vagas – renda maior que 1,5 salário. As 802 vagas correspondem a 14,7% das vagas da Ufam destinadas para a Lei de Cotas, informa a assessoria.

De acordo com a assessoria, a Ufam tem até 2016 para oferecer 50% (25% para pretos, pardos e indígenas e 25% para alunos de escola pública) de suas vagas para a Lei de Cotas. No ano de 2014, foram 1470 vagas destinadas para a Lei de Cotas. Ou seja, 26,9% das vagas.

Foto de Capa: Joana Rebouças/Pet

Fonte: Ponte.org

 

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