A USP, a medicina e o racismo

Nossas instituições precisam mudar. Isso é um dos grandes desafios para os próximos anos e as jornadas de junho mostraram isso com um eco ainda maior nas ruas. Estamos quase todos animados e esperançosos na torcida para que todos e todas envolvidos(as) nos escândalos de corrupção sejam punidos de fato, com a devida imparcialidade e sem revanchismos políticos e golpes midiáticos. Merecemos um país melhor.

Por: Mônica Francisco  Do: Jd

A mudança de postura do Judiciário e uma maior transparência, além de uma melhor relação com os cidadãos e cidadãs, também é o desejo de todos nós. Magistrados que se coloquem como aliados do povo e não cada vez mais distantes deste, salvo algumas raras exceções que demonstram  na prática o desejo de servir à sociedade indistintamente.

Talvez por efeito da atmosfera natalina, queiramos tantos presentes ao mesmo tempo, à despeito de todo esforço de diminuir o consumismo, nesse caso ele é bem-vindo. Na continuidade desta lista de desejos, uma mudança na postura dos nossos médicos seria um belo presente.

Não são poucas as queixas da falta de atenção dispensada aos pacientes que ouvimos e que recebemos quase todos os dias, de amigos e conhecidos, seja em conversas ou através de redes sociais ou até em alguns casos, nós mesmos, cidadãos e cidadãs, presenciamos como testemunhas impotentes na maioria das vezes, de atos que acabam depondo contra a imagem dos profissionais em questão.

Muitos são os questionamentos e uma preocupação cada vez crescente vem tomando corpo, principalmente os relacionados à continuidade da formação e a postura futura no trato com a população de maneira geral, dos alunos de medicina da USP, e isto, pela visibilidade dada aos casos de violência e estupro ligados à faculdade de medicina da universidade.

Esse episódio só nos serve de amostra do que já sentimos na vida real, tanto nas instalações públicas, quanto nas unidades da rede privada de saúde, um crescente descaso com a vida. Se fizermos uma busca em nossa memória passada recente, veremos o caso do fotógrafo que morreu sem atendimento em frente a um hospital em Laranjeiras, um jovem de 25 anos que morreu em frente à uma UPA (Unidade de pronto Atendimento). A senhora que morreu nesta quinta-feira em frente à UPA do Complexo do Alemão.

A jovem que morreu sem ser atendida, aguardando cerca de 24 horas por atendimento para uma apendicite e veio a óbito, as parturientes que morrem ou são negligenciadas na sua dor, produzindo consequências desastrosas, como o de uma amiga que teve seu bebê horas depois do horário em que deveria ter sido realizado o parto, e que como resultado teve seu bebê com sérias sequelas por falta de oxigênio no cérebro da criança. Os casos de morte de recém-nascidos, enfim uma tragédia nossa de cada dia.

Tudo isso se evidencia com cores mais fortes (sem trocadilhos aqui, apenas uma constatação), quando os(as) pacientes são negros(as). Isso, se concretiza com as famosas estatísticas, duras e estarrecedoras. Em virtude disso, o Ministério da Saúde e a Secretaria de Direitos Humanos do governo Federal lançaram no último dia 25 a campanha “Racismo faz mal à saúde”, e nós sabemos na prática e na experiência cotidiana que não só faz mal e adoece, mas que mata de fato.

A  postura de nossos médicos e médicas demonstram que algo está errado há muito tempo e com terríveis resultados. A elite branca e conservadora faz vista grossa às atrocidades cometidas por seus filhos, como no caso da USP, onde as vítimas são chamadas a terem hombridade e honestidade e os autores são “protegidos” e medidas singelas como “proibir bebidas no campus” são tomadas, nos soam como o marido traído que tira o “sofá” da sala e não resolve a causa do problema, só vem fazer coro à afirmação inicial.

Ou seja, as vítimas são instadas a agirem com honestidade e sinceridade, já os vitimizadores são poupados. Nós também pedimos, como sociedade, que as universidades comecem a punir de verdade os envolvidos em ações desta natureza. Porque a despeito do discurso indignado dos médicos que já atuam em reação à campanha contra o racismo institucionalizado  e materializado no trato cotidiano, afirmando  que o sistema de saúde pública não tem estrutura para que se façam atendimentos dignos, esta sim seria a real causa das mortes e péssimo atendimento dispensado aos pacientes de maneira geral, e com nuances mais dramáticas em se tratando de negros e negras.

O episódio da e na USP nos mostra  exatamente o contrário. São estas pessoas que vão nos atender e nos olhar com desprezo. Ou melhor, não vão nem nos olhar. Que não vão nos tocar, e que no máximo nos perguntarão com clara impaciência sobre nossas dores. Não podemos nos calar, não podemos consentir que essas pessoas que declaram que mulheres negras são imundas tenham total isenção em suas práticas racistas que serão continuadas e exacerbadas nas suas práticas profissionais.

Os movimentos de humanização do parto, de diminuição do número de cirurgias cesarianas, o movimento de humanização dos profissionais que trabalham no Sistema Único de Saúde, o fim da episiotomia, o corte feito no órgão feminino, como prática cruel, mutiladora e degradante no momento do parto, entre outros movimentos que pretendem desenvolver um senso de humanidade no tratamento médico, são a prova de que os médicos brasileiros, em sua maioria brancos e herdeiros destes sentimentos, publicizados pela juventude branca paulista do curso de medicina da USP, se distanciaram do sentido real de sua prática.

E quando precisamos de medidas, campanhas e ações que visem promover a humanização de quem se propõe a dedicar-se à vida de seu semelhante, devemos nos preocupar de verdade. Primeiro porque se levarmos em conta que para muitos os sentido de semelhante é somente os que se conformam de acordo com seu grupo fenotípico e social, como na cartilha da turma de São Paulo e de muitos tantos por aí, e não o que versa a dinâmica cristã ou espiritual desta afirmação, estamos perdidos de verdade.

“A nossa luta é todo dia. Favela é cidade. Não aos Autos de Resistência, à GENTRIFICAÇÃO e ao RACISMO, ao RACISMO INSTITUCIONAL, ao VOTO OBRIGATÓRIO e à REMOÇÃO!”

*Membro da Rede de Instituições do Borel, Coordenadora do Grupo Arteiras e Consultora na ONG ASPLANDE.(Twitter/@ MncaSFrancisco)

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