USP revoga concurso de docente negra aprovado por unanimidade

09/12/25
Decisão contraria parecer interno e mobiliza a Defensoria Pública em disputa por vaga de Literaturas Africanas

A Universidade de São Paulo tomou, em março deste ano, uma decisão que mudou o rumo da carreira da professora e pesquisadora Érica Bispo: a instituição anulou o concurso público que a havia aprovado por unanimidade para a vaga de docente de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH). 

No segundo semestre de 2024, o Ministério Público de São Paulo (MP-SP) concluiu um inquérito sobre o certame e decidiu arquivá-lo ao não encontrar indícios de irregularidades. Apesar disso, a USP reverteu o resultado, contrariando também o parecer da Congregação da FFLCH.

A docente, que possui mestrado, doutorado e pós-doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, foi aprovada em 21 de junho de 2024 e nomeada em 12 de novembro do mesmo ano, por portaria assinada pelo reitor Carlos Gilberto Carlotti Junior. A anulação foi motivada por um recurso apresentado por seis candidatos, que alegaram “possíveis irregularidades” relacionadas a supostas relações pessoais entre Érica e membros da banca.

“Eu soube do recurso através de uma outra candidata, com quem entrei em contato semanas depois do concurso. Ela me falou que tinha entrado com recurso, junto com outros candidatos, mas não me deu detalhes”, afirmou a professora.

MP-SP não encontrou irregularidades, mas USP manteve suspeitas

O recurso levou o caso ao MP-SP, que investigou o processo referente ao Edital FFLCH/FLC nº 024/2024. Após analisar o episódio, o órgão concluiu que não houve improbidade. Mesmo assim, a Procuradoria-Geral da USP acolheu os questionamentos, sustentando que fotos retiradas de redes sociais indicariam “convivência íntima” entre a candidata aprovada e duas docentes da banca.

Érica contestou com firmeza essa narrativa. Segundo ela, a acusação de amizade íntima foi construída a partir de “algumas fotos em grupo, em momento de lazer, durante congressos acadêmicos”. Ela destacou que as “seis fotos aleatórias retiradas de redes sociais” retratam eventos de uma área acadêmica pequena, e que isso não constitui prova de proximidade que comprometesse a lisura do concurso. A banca era formada por cinco integrantes, todos responsáveis por notas altas e consistentes.

A servidora, que ingressou no serviço público em 2006, criticou a fragilidade dos argumentos que embasaram a decisão. “Tradicionalmente, levantar suspeitas sobre a banca tem um prazo específico antes da realização do certame. Suspeitar da banca após o resultado final – que foi o que o recurso fez – é algo recorrentemente descartado na maior parte das universidades, porque, na verdade, só demonstra insatisfação com o resultado”, declarou.

Professora denuncia discriminação racial

Como mulher negra, Érica afirmou enxergar o questionamento ao concurso como expressão de racismo estrutural. Ela relatou que diversas pessoas negras têm compartilhado experiências semelhantes, marcadas por dificuldades em ocupar postos de poder no ambiente universitário. “Pelo aspecto racial, o Brasil ainda precisa tratar da herança escravocrata, que nega ao sujeito negro os espaços de destaque social e cria barreiras para a ascensão de mais da metade da população”, disse.

O impacto emocional da anulação foi severo: a professora relatou ter perdido cinco quilos em um mês devido ao estresse, enfrentando problemas digestivos significativos.

USP lança novo concurso; Defensoria pede suspensão

A anulação da nomeação de Érica foi publicada em 15 de julho de 2025. Poucos meses depois, em 1º de outubro, o Diário Oficial lançou um novo edital para a mesma vaga. A Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DPESP) reagiu, solicitando à USP que suspendesse o processo até a conclusão da defesa administrativa da professora.

“O novo concurso consolidou a injustiça e passou por cima do meu direito. Fui aprovada por mérito, por unanimidade, por todos os cinco avaliadores que estavam compondo a banca, tanto aqueles que tiveram a suspeição levantada quanto os que não tiveram. Com a abertura do novo edital, a minha luta se tornou uma corrida contra o tempo”, afirmou Érica.

O Núcleo Especializado de Promoção da Igualdade Racial da Defensoria informou ao ANDES-SN que pediu a suspensão do certame. Entretanto, a USP respondeu que “não há óbice para a continuidade do concurso”. A professora também ingressou na Justiça por meio de advogado particular.

Sindicato denuncia racismo institucional

A Comissão Nacional de Enfrentamento à Criminalização e Perseguição Política a Docente, ligada ao ANDES-SN, acompanha o caso. Para Caroline Lima, 1ª vice-presidenta do sindicato, a decisão da USP se insere em um padrão de violência institucional. “Para a direção do Sindicato Nacional, o que o Conselho Universitário da USP fez em relação ao concurso de Érica Bispo é racismo institucional. Todo o processo é marcado por várias irregularidades”, afirmou.

O sindicato reiterou solidariedade à professora e destacou que seguirá atuando para garantir o cumprimento da lei de cotas e a posse da candidata aprovada.

Disputas por ações afirmativas atingem diversas universidades

O caso não é isolado. Em 2023, a Defensoria Pública de São Paulo já havia acionado a Justiça para suspender mais de 200 concursos da USP devido à ausência de previsão de cotas raciais nos editais, mesmo após a aprovação da política de ações afirmativas pela universidade.

Em outras instituições federais, episódios semelhantes expuseram dificuldades enfrentadas por docentes negros. Entre eles, o processo envolvendo o professor Ilzver de Matos Oliveira, na Universidade Federal de Sergipe, e a batalha travada por Ana Luísa de Oliveira na Universidade Federal do Vale do São Francisco, ambos marcados por disputas judiciais e denúncias de racismo institucional.

Os casos reforçam o debate sobre a democratização do ensino superior e o compromisso das universidades públicas com políticas de inclusão e reparação histórica.

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