‘Valeu a pena’, diz engenheira negra que tirou RG depois de denunciar racismo em Contagem

Enviado por / FonteG1, por Maria Lúcia Gontijo

Fabiane Jardim, de 39 anos, buscou o RG, na manhã desta segunda-feira (23), no posto da Unidade de Atendimento Integrado (UAI), após uma semana de ter registrado boletim de ocorrência contra racismo.

“Valeu a pena, não me arrependo de nada, eu espero que mais ninguém muito menos a descendência da mãe África passe por essa situação vergonhosa chamada racismo.”

Este é o sentimento da engenheira Fabiane Jardim, de 39 anos, depois de buscar a 2ª via da Carteira de Identidade, na manhã desta segunda-feira (23), uma semana após ter registrado um boletim de ocorrência contra racismo que teria sofrido no posto da Unidade de Atendimento Integrado (UAI), do governo estadual, localizado no shopping Contagem, na Região Metropolitana de BH.

Fabiane disse ao G1 que foi buscar o documento acompanhada de um amigo para “evitar que eu passasse outro constrangimento.”

Fabiane Jardim retirou, na manhã desta segunda-feira (23), RG com a foto usando trança, no UAI em Contagem — Foto: Arquivo pessoal

“Foi tranquilo, as pessoas ficaram me olhando, mas não me disseram nada, além da entrega do meu documento. Todos estavam lá, a gerente, o investigador, inclusive o rapaz que negou minha foto por eu estar de tranças”, contou.

A engenheira ainda disse que olhar para o RG com a foto dela com trança foi um “alívio”.

“Sentimento de liberdade, de ter o meu direito exercido como uma cidadã de bem”, falou.

Relembre o caso

“Quantas mulheres pretas já devem ter voltado para casa porque a foto delas, usando trança, não foi aceita?”

Foi o que disse Fabiane ao G1 no dia 18 de agosto, após sua foto 3×4 ter sido recusada na hora de solicitar a 2ª via da Carteira de Identidade.

A recusa aconteceu dois dias antes, no posto da Unidade de Atendimento Integrado (UAI), localizado no shopping Contagem, na Região Metropolitana de BH.

O motivo da recusa, segundo relato da engenheira, foi a trança usada por ela desde a infância, que estava “diferente” para o atendente.

“No primeiro momento ele não soube me explicar [o motivo da recusa]. Depois ele falou que era por causas das tranças que estavam ‘diferente’. Eu sou uma mulher negra, uso trança desde criança, eu tenho raiz africana, minhas matrizes são africanas, minhas tranças não são acessórios, fazem parte da minha identidade pessoal”, disse Fabiane.

A engenheira teve que passar por uma “via crucis” antes de, finalmente, ter a foto liberada. A primeira atendente levou a foto para o responsável, que deu a negativa. Quando ela voltou com a resposta, Fabiane retrucou, e a foto ainda foi mostrada a mais dois servidores antes de ela ouvir o “ok, vamos fazer”.

Para Fabiane, o sentimento foi que os atendentes cederam para que ela fosse embora “e não render mais”.

“Depois do processo para segunda vida do RG, eu procurei a gerente do UAI, que me pediu desculpas, mas eu falei que era racismo e inadmissível acontecer isso dentro de um local como aquele. Uma situação muito constrangedora, fiquei muito chateada, eles não imaginavam que eu ia tomar todas as medidas cabíveis contra esse absurdo”, contou.

E ela tomou. No mesmo dia, procurou a 1ª Delegacia de Polícia Civil de Contagem, onde registrou um boletim de ocorrência. Ela também registrou uma denúncia na Superintendência de Igualdade Racial de Contagem e disse que pretende acionar o Ministério Público.

Governo lamenta e polícia vai apurar

Em nota, na época, a Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão (Seplag) lamentou o ocorrido e informou que as Unidades de Atendimento Integrado (UAI) “repudiam qualquer tipo de atitude preconceituosa, prezando sempre pela excelência no atendimento aos cidadãos”.

Disse ainda que diante do ocorrido na UAI Contagem, “esclarecemos que os fatos foram apurados para verificar a conformidade com as normas pré-estabelecidas pela Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG), conforme Portaria nº 2, de 15 de abril de 2019, do Instituto de Identificação, que estabelece padrões técnicos mínimos para a fotografia a ser utilizada no processo de carteiras de identidade civil no Estado de Minas Gerais”.

“Conforme informou o setor do Instituto de Identificação, a foto apresentada pela cidadã no momento da triagem causou dúvidas por apresentar superexposição (faixa branca de claridade em excesso) na parte superior e sombra na parte inferior. Sendo assim, a colaboradora solicitou análise do supervisor do setor, uma vez que apenas a autoridade policial tem competência para validação, e o supervisor liberou a utilização da foto apresentada”.

Ainda segundo a Seplag, “as características pessoais não influenciam na avaliação para a confecção do documento de carteira de identidade, desde que não impeçam a visualização do rosto do requerente”.

A Polícia Civil informou, também em nota, “que cientificada da ocorrência de injúria racial, registrada segunda-feira (16), em Contagem, instaurou procedimento investigativo e vem adotando todas as providências cabíveis para apuração do fato”.

A investigação tramita na 7ª Delegacia de Polícia Civil do município, “onde a vítima será ouvida e os trabalhos estão em andamento para identificar o atendente”.

A Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania informou que Fabiane Jardim foi recebida pelo superintendente de Política para a Promoção da Igualdade Racial, João Pio. “A secretaria está acompanhando o caso e incumbirá aos órgãos competentes às demais providências legais”.

A prefeitura ainda disse que “continuará empenhada diariamente no enfrentamento ao racismo, no combate a discriminação racial, a intolerância e o preconceito racial em todas as esferas sociais, na construção de uma sociedade com justiça social e combate às desigualdades, no enfrentamento à toda forma de violência e violação de direitos”.

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