Quando escolheu o codinome pelo qual ficaria conhecida na cena da poesia marginal de São Paulo, a poeta Cynthia Santos decidiu-se por Kimani. O nome de origem africana-americana, que significa “meiga e doce”, parecia perfeito para alguém que descobriu o talento com as palavras escrevendo cartinhas no jardim de infância.
Por NATALIA GUARATTO, Da TPM
O tempo passou e as frases de amor e carinho deram lugar ao desabafo em forma de versos e gestos potentes sobre ser mulher, ser negra e ser da periferia. “Sempre consigo escrever quando estou muito puta”, diz a artista, que foi consagrada campeã do Slam BR 2019, maior competição de poesia falada do país, em dezembro deste ano.
Nascida no Grajaú, zona sul de São Paulo, Kimani cresceu dentro da Igreja Católica, onde certa vez escutou uma profecia. “Uma moça me disse que eu seria uma pregadora, ela não sabia como isso ia se desenvolver, mas era a minha missão”, lembra. De um jeito ou de outro, parece que ela acertou – e alguns sinais mostram que a poeta está pronta para cumprir seu destino.
Escrito e falado por Kimani, o manifesto “Mostra Para Eles, Mulher” que fez parte do lançamento da série britânica “The Handmaid’s Tale” no Brasil, em fevereiro, viralizou. Já são 16 milhões de pessoas que pararam um minutinho para ouvir a palavra dela.
E em 2020 tem mais. Em maio, ela embarca para a França, onde representará o Brasil na Copa do Mundo de Slam. No ano que vem, lança ainda o EP “Oração” e o curta-metragem “Fé Refeita”, contemplado no edital PROAC, que terá como contrapartida oficinas de slam em unidades da Fundação Casa de São Paulo e Baixada Santista.
Em entrevista à TPM, Kimani falou sobre como a poesia marginal tem sido seu instrumento de confronto e expressão com o mundo. “Nem sempre tenho coragem para chamar as pessoas no diálogo para falar o que penso, mas na poesia eu tenho”, diz.
E aí, já tirou o passaporte para embarcar para a França? Ainda não, vou fazer isso agora. Vai ser a minha primeira vez fora do Brasil, estou meio boba ainda, principalmente por ir fazer poesia. Isso é muito significativo.
Como foi voltar ao Slam BR este ano e ser campeã depois de ter ficado com o vice-campeonato em 2017? Rolou uma cobrança interna. Nunca estive tão nervosa em todas as competições que já passei. Claro que ter sido vice em 2017 tem um peso. O difícil agora é me manter na cena, conseguir trazer novidade sem ser aquela coisa previsível, das pessoas falarem “ah, já sei o que ela vai fazer”. Foi o meu maior desafio, mas senti que fui crescendo ao longo da competição.
É verdade que você escreve poesia desde os seis anos? Tive a sorte de, no começo da infância, estudar em uma escola particular, que tinha saraus. Lá tinha espaço para falar de sentimento. Lembro que, nas minhas primeiras cartinhas para os meus pais, escrevia frases como “que Deus te proteja com as nuvens de amor”. Era uma coisa meio de simbologia, mas o que eu estava querendo dizer já era poesia.
De onde vem a inspiração para escrever as coisas nada dóceis que você escreve?
Meu processo criativo é sentir. Sempre consigo escrever quando estou muito puta com alguma coisa, quando estou com raiva. Escrevi um último texto antes do Slam BR porque estava muito chateada com algumas coisas que eu tinha ouvido, sabe? Umas pessoas me chamando de palmiteira, porque eu namoro um homem branco. Então falei “ah beleza, vamos falar sobre isso”. E é muito foda, porque nem sempre tenho coragem para chamar as pessoas no diálogo para falar o que eu penso, mas na poesia eu tenho. Então uso a poesia para desabafar, desafogar o que está entalado.
Antes de conhecer o slam, você tentou uma carreira no mundo corporativo. Como foi a época de analista de recursos humanos? Eu trabalhava com treinamento, recrutamento e seleção. Minha carreira estava desenhada, se eu quisesse ter continuado, hoje eu seria plena ou sênior, só que eu não me identificava com aquilo. Ficava muito puta de ter que desqualificar algumas pessoas porque elas tinham características físicas que não agradavam o gestor.
Como assim? Eu selecionava as pessoas pelo currículo, fazia todo um trabalho, aí chegava o gestor responsável pela marca ou pelo cliente e falava: “aquele ali não porque tem dread” ou “aquela ali não porque ela tem idade de quem vai engravidar daqui a pouco”. Isso me destruía. Já percebia, mesmo sem entender, esse processo de racismo. Aquela pessoa não foi selecionada porque é mais escura, aquela outra porque tem dread e parece sujo, e eu me sentia muito mal.
Como o slam entrou na sua vida? Eu tinha acabado de ser mandada embora do RH. Não me identificava mais com a profissão. Também estava em um processo de transição capilar, cortei o cabelo curtinho para começar a assumir os cachos. Em 2017, conheci a poesia marginal durante uma oficina de escrita para mulheres pretas, com a Ryane Leão. A maior curiosidade que eu tive foi o nome da oficina, que era “Escrita Para Mulheres Negras” e eu fiquei assim: “Ué, mulher negra escreve diferente? Por que uma mulher negra é diferente de uma morena?” E aí eu me inscrevi para fazer a oficina.
E como foi? Foi a abertura. Nessa época, estava entendendo como era ser negra porque, apesar de eu ter um pai negro, uma mãe negra e uma família toda negra, o fato de eu ter nascido um pouco mais clara, não retinta, sempre fez com que as pessoas me lessem como morena. Foram dois dias bem intensos, um sábado e um domingo.
Quais aprendizados você leva dessa oficina? A Ryane passava desde o que era a estrutura de uma poesia até chegar na poesia marginal, só que era uma roda de mulheres negras, várias meninas – eu a mais nova –, uma galera mais velha, algumas mulheres que nunca tinham escrito, mas sempre anotavam coisas em um caderninho. E eu me identifiquei com aquilo, porque sempre tive diário, sempre escrevi, mas nunca mostrei para as pessoas. Foi muito bonito, porque uma das vivências que a gente teve era para falar sobre ancestralidade, então a gente teve que se lembrar das coisas do passado, lembrar da mãe, do pai. Fomos costurando e vendo como algumas das nossas trajetórias individuais tinham muito do coletivo. Fomos identificando aquilo como um coletivo negro, isso foi muito importante para mim.
Como você decidiu que iria se tornar uma slammer? No último dia da oficina, a Ryane mostrou vídeos de poetas marginais. Aí conheci o Slam da Resistência, o Slam da Guilhermina. Fiquei vendo aquelas mulheres no meio do palco gritando e eu: “cara, como elas têm coragem?”. Achei aquilo muito desafiador. Ao imaginar que eu conseguiria falar o que escrevo para as pessoas, aquilo brilhou meus olhos e nunca mais parei. Foi muito louco porque, a partir de 2017, foi rolando tudo. Comecei a ir nos slams e, quando vi, já estava competindo no Slam SP, depois no Slam BR e conquistando o vice-campeonato.
O que significou para você emplacar um trabalho para a campanha de lançamento da série “Handmaid’s Tale” no Globoplay? Não foi só um trabalho para o Globoplay, foi um trabalho para uma série britânica e branca. Vamos deixar isso bem claro. Quando recebi o convite, teve muito esse processo de primeiro achar que eu não era capaz. Depois, gostei do desafio. Claro que não tinha a menor ideia que iria viralizar tanto. Também tinha receio se realmente eu iria conseguir fazer do “jeito Kimani”. Tive medo de ficar engessada, muito dependente do briefing que me passaram, mas foi muito tranquilo. Eles me liberaram para falar o que eu quisesse, claro que a parte de palavrões eu tive que cortar por conta da TV, mas com relação ao conteúdo é um texto que você ouve e fala: “A Kimani escreveu isso”.
A cultura urbana e periférica está na moda. Tem rolado muitos trabalhos para marcas? Estamos chegando ao final de 2019 e eu colhi muitos frutos. Agora no final do ano, teve uma campanha para a Authentic Feet com a Nike, que a gente fez um rap. Tenho feito muitas campanhas publicitárias e entendi que meu trabalho é muito para além do slam. A poesia e a linguagem poética podem me levar para outros lugares e posso experimentar outras formas de escrever. Essa liberdade me deixa muito feliz e me encoraja também. Quero testar outras possibilidades.
Existe todo um movimento na publicidade reivindicando mais espaços para profissionais negros. Você tem sentido as portas mais abertas?
Sinto que estão, mas também sinto que estamos recebendo o mínimo. Não digo no sentido de valor, digo no sentido de oportunidade. É muito foda você pensar que, nessas campanhas, é sempre uma Kimani que está representando. As pessoas se lembram sempre do mesmo ator negro, da mesma atriz negra, então tem uma representatividade, mas é mínima. Quero ir para a França para que outras mulheres vejam que podem ir também e não fiquem só sendo representadas pela Kimani. Cada uma tem uma voz por si só. A gente realmente está tomando esses espaços, espaços que foram negados, mas hoje também estamos cada vez mais arrebentando as portas.
Você acha que as oportunidades para criativos negros no mercado de conteúdo ainda se restringem muito a datas ou a necessidade de representatividade pontuais?
Participar desse processo do manifesto de “Handmaid’s Tale” foi muito isso porque eu provei que sendo uma mulher negra, eu consigo fazer qualquer tipo de trabalho. Não quero ser chamada só para fazer a campanha do Dia da Consciência Negra. Eu quero ser requisitada o ano todo porque eu posso escrever sobre várias coisas. É muito foda a gente imaginar que só no mês de novembro somos chamadas, então: “olá brancos, vamos pensar sobre isso?”.