Verbete: Pierre Bourdieu, por Frédéric Vandenberghe

Pierre Bourdieu, 1930-2002

Foto: Ulf Andersen/Getty Images

 

Por Frédéric Vandenberghe

Tradução: Diogo Silva Corrêa, do Blog do Sociofilo

Pierre Bourdieu é o sociólogo francês mais conhecido (depois de Durkheim) e o mais citado (depois de Foucault) no exterior. De origem provinciana, Bourdieu “ascendeu” a Paris na década de 1950 para estudar filosofia na École Normale Supérieure (1950-1954), se converteu à antropologia e à sociologia durante o serviço militar na Argélia (1956-1958) e desenvolveu suas ideias a respeito de uma ciência total do mundo social na década de 1960 (1966 a 1974); trabalhou com a sociologia da educação e da cultura na década de 70, foi nomeado professor no Collège de France em 1983 e engajou-se como intelectual público nas lutas sociais contra o neoliberalismo na década de 1990. Desde o início até o fim, esta trajetória social improvável que saiu do sudoeste da França e chegou ao topo da vida acadêmica parisiense introduziu uma fratura dolorosa em seu modo de ser (“habitus clivado”), típico de pessoas que fazem bruscas transições entre classes sociais, cujo testemunho está em seu exercício de auto-objetificação e reflexão sociológica (Bourdieu, 2004, primeira edição em alemão). Por importação de conceitos filosóficos na sociologia e por exportação de métodos sociológicos na filosofia, Bourdieu montou um forte sistema sociológico que permite analisar empiricamente as estruturas sociais de dominação e as práticas que reproduzem as desigualdades a partir de uma perspectiva crítica.

Por Frédéric Vandenberghe, do Sociofilo

Fundador da revista Actes de la recherche en sciences sociales, uma revista heterodoxa de vanguarda, uma espécie de ‘fanzine das ciências sociais’ (Boltanski, 2008: 43) que funciona desde 1975 até hoje como o corpo principal da Escola bourdieusiana, Bourdieu publicou mais de trinta livros e quatrocentos artigos (Delsaut e Rivière, 2002). Entre seus livros mais importantes e mais conhecidos, pode-se citar A reprodução (Bourdieu e Passeron, 1970), A distinção (Bourdieu 1979), O senso prático (Bourdieu 1980) e Meditações pascalianas (Bourdieu, 1997). Mais acessível aos leitores não iniciados, as “publicações de apresentações orais ou entrevistas” (Bourdieu 1984, 1987, 1992) e, especialmente, os cursos do Collège de France, em vias de publicação. Comparável aos cursos de Foucault, 10 volumes são planejados. São incontáveis os manuais de introdução, os livros, as edições especiais de revistas, os volumes comemorativos, os dicionários e blogs (tais como a revista “l’homme moderne”) dedicados ao seu trabalho. Falta apenas uma revista de estudos bourdieusianos (Journal for Bourdieusian Studies)! Loïc Wacquant, Louis Pinto, Bernard Lahire, Derek Robbins, Rogers Brubaker, David Swartz, Nick Crossley e Simon Susen estão entre os melhores comentadores e críticos do mestre.

Mais do que clássica, a sociologia crítica de Pierre Bourdieu é hegemônica no campo da sociologia mundial. Mesmo que tudo a separe do funcionalismo estrutural de Talcott Parsons, sua influência é, sem dúvida, comparável àquela que este último detinha nas ciências sociais no período pós-guerra. Agora, tanto em Paris quanto em Nova Déli ou em São Paulo, estudantes de sociologia conhecem e citam seus conceitos centrais: “campo”, “habitus”, “capital cultural” e “violência simbólica”. De fato, em uma disciplina dispersa como a sociologia, o léxico da sociologia crítica fornece uma linguagem comum para o diálogo não só entre os cientistas sociais, mas também entre os sociólogos e antropólogos (e, em menor medida, entre os filósofos, historiadores, estatísticos, economistas, estudiosos da literatura, etc.). Além disso, sua influência internacional é tão grande que podemos até reconstruir a história recente da sociologia alinhando os autores cujas obras são diretamente tributárias de Bourdieu, seja porque tenham diretamente trabalhado com ele em Paris (Luc Boltanski, Laurent Thévenot, Margaret Archer, Michèle Lamont, Nathalie Heinich, Loïc Wacquant), seja porque tenham desenvolvido a sua própria teoria inspirando-se (Axel Honneth Bernard Lahire Georg Steinmetz) ou opondo-se (Bruno Latour, Alain Caillé, Jacques Rancière, Jeffrey Alexander) diretamente à sociologia crítica. Em qualquer caso, “pensar com Bourdieu e contra Bourdieu” é a fórmula que faz a sociologia avançar.

A força de Bourdieu vem do “choque ontológico” que seus textos fornecem ao leitor. O leitor sente que os textos falam não só dele próprio, mas de sua esposa, de seus amigos, tudo isso através de uma objetivação metódica do sistema de que fazem parte, e explica sistematicamente as suas práticas, atos, formas de pensar, de classificar, de falar, em suma, de ser, pela posição social que ocupam; o leitor se reconhece nas descrições proustianas do mundo social ao mesmo tempo que do próprio mundo se aliena. Na leitura da obra bourdieusiana, a objetivação do mundo vivido de cada um a partir da perspectiva de uma sociologia do conflito, que revela os meandros do poder e concebe o mundo como um mundo competitivo e estratificado, ordenado por mecanismos e processos de dominação e de reprodução, é, com efeito, uma faca de dois gumes. De um lado, a força da conceituação da dominação e de sua demonstração empírica atordoram; de outro, desperta-se uma indignação moral face às injustiças e às desigualdades sociais que inspira a análise da dominação. O resultado paradoxal, típico de qualquer teoria crítica, é que objetivação científica alimenta simultaneamente o sentimento de alienação e a vontade de resistir.

O poder de sedução exercido pelo trabalho de Bourdieu em sociólogos e antropólogos se deve ao fato de que ele combina e submete a grande reflexão teórica aos constrangimentos de uma pesquisa empírica de campo que inclui uma variedade de métodos qualitativos e quantitativos (etnografia, entrevistas, estatísticas) para rastrear as operações de poder na vida cotidiana. Filosoficamente, Bourdieu se baseia na epistemologia histórica de Bachelard e de Canguilhem, na filosofia das formas simbólicas de Cassirer e da linguagem de Wittgenstein para superar a oposição entre o estruturalismo de Lévi-Strauss e a fenomenologia de Merleau-Ponty. Sociologicamente, Bourdieu incorpora reflexões dos fundadores da sociologia (Marx, Weber, Durkheim) em uma nova síntese que revê e especifica a abordagem de cada um deles jogando um contra o outro para refiná-los melhor. Bourdieu é, portanto, tanto o herdeiro da escola de Durkheim (linhagem: Durkheim-Mauss-Lévi-Strauss) quanto da sociologia de Weber (filiação: Weber-Mannheim-Elias) e da sociologia marxista (filiação Marx-Althusser-Poulantzas). O resultado é uma teoria dialética das práticas que ultrapassa habilmente a oposição entre ação e estrutura, a consciência coletiva e o corpo individual, por meio de uma articulação fina dos conceitos de campo, habitus, práticas e violência simbólica.

Para bem entender o estruturalismo genético que a sociologia crítica subentende, é importante reconstruir a arquitetura da sociologia geral de Bourdieu, desde que mantendo em mente que o trabalho de axiomatização de operações conceituais é feito para colocá-los em operação e confrontá-los na pesquisa aplicada. Pode-se discernir três momentos que colocam a construção teórica em movimento e guiam o processo científico: a teoria do conhecimento sociológico, a metateoria do estruturalismo genético e teoria sociológica da produção, da circulação e do consumo de bens culturais. Enquanto a teoria do conhecimento sociológico desenvolve os princípios epistemológicos de uma sociologia racionalista e relacional do espaço social, a metateoria do estruturalismo genético conecta a estrutura social e as práticas culturais por meio de uma articulação dialética entre os conceitos de campo, habitus, prática e violência simbólica. Aplicado à cultura, no sentido mais amplo do termo, o sistema de conceitos desemboca em uma série impressionante de campos de pesquisas históricas e empíricas e sub-campos de bens simbólicos. Juntos, os três momentos constituem a teoria do mundo social de Bourdieu em todo o seu esplendor.

Em um primeiro momento (filosófico), trata-se de romper com o pensamento substancialista e as aparências da sociologia espontânea (Bourdieu, Chamboredon e Passeron, 1973). Através de uma “ruptura epistemológica” com o senso comum, é preciso introduzir o método de pensamento estrutural-relacional do estruturalismo na sociologia e construir o fato científico como um conjunto de relações internas entre entidades que formam sistema. A passagem da epistemologia à sociologia se concretiza na topologia do espaço social (campo das classes sociais) e na teoria dos campo (como teoria dos subsistemas culturais relativamente autônomos). O campo é um sistema de relações entre as posições sociais que o sociólogo constroi. Ele é, estritamente falando, a unidade de análise e seu ponto de partida. Por meio da generalização do conceito marxista de capital econômico, Bourdieu distingue três grandes tipos de capital (os capitais econômico, cultural e social) que permitem especificar a noção de posição social. Cada posição no campo é definida pelo capital específico que possuem os agentes, assim como pelo volume (capital total) e a estrutura das diferentes espécies de capitais (capitais econômico e cultural variáveis). Através da aplicação de uma análise de correspondência, técnica matemática que operacionaliza o modo relacional de pensamento, o pesquisador obtém uma representação gráfica das posições espaciais do campo social com as classes dominantes acima, elas próprias divididas por uma oposição entre fração dominante (alto capital econômico) e fração dominada (alto capital cultural), e as classes dominadas, chamadas de “populares”, abaixo. Esta representação gráfica do espaço social é tão comum que ela serve de algum modo como um tipo de emblema totêmico do clã dos bourdieusianos.

Se a noção de campo constitui o momento objetivista da análise, a noção aristotélica de hexis / habitus é a sua versão subjetivista. As posições sociais são ocupadas por indivíduos ou coletivos. São eles que animam a estrutura, mas, a fim de fazê-lo, é preciso que o sistema de posições (o campo) se sedimente em um “sistema de disposições” (habitus). Como uma presença do campo no individuo e no colectivo, o habitus representa a internalização ou a incorporação de um sistema de posições em um sistema de disposições. Ambos são sistemas invisíveis, construídos pelo sociólogo para explicar causalmente a produção de práticas empíricas. Assim, ao vincular a posição objetiva (campo) às disposições subjetivas (habitus), que, juntos, produzem as ações sociais (práticas), passa-se da explicação mecanicista para uma interpretação quase-finalista da ação (quase, pois na adaptação das disposições às posições sociais “tudo se passa como se” os indivíduos agissem com consciência e vontade). Produto da socialização, o habitus existe tanto na cabeça enquanto “estruturas mentais” (categorias de representação, classificação e avaliação) quanto no corpo enquanto “estruturas incorporadas” (esquemas comportamentais e princípios motores da ação). Produzido pelo sistema de posições sociais, o habitus é, portanto, um sistema de mediação cultural / corporal entre a sociedade e o indivíduo que produz intencionalmente, mas não conscientemente, as práticas que reproduzem de forma necessária, mas não intencional, a estrutura social. Em uma formulação clássica que os sociólogos contemporâneos sabem de cor, Bourdieu define o habitus como um “sistema de disposições duráveis ​​e transponíveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é, como princípios gerativos e organizadores das práticas e representações que podem ser objetivamente adaptadas a seu objetivo sem supor fins conscientes e o domínio expresso das operações necessárias para alcançá-los” (Bourdieu, 1980: 88-89). Se a relação circular entre o campo e habitus aparece mais frequentemente em Bourdieu como uma relação de reprodução e não de transformação, é porque ele intercalou os conceitos de “poder” e de “violência simbólica” com os de habitus e práticas. Como a ideologia em Marx, a violência simbólica opera como sistema inconsciente que distorce sistematicamente as representações do mundo social. Exprimindo de forma sublimada os interesses das classes dominantes que exercem o poder, o poder simbólico faz com que a dominação seja invisível para aqueles que a sofrem, obtendo deste modo a sua cumplicidade – já que o mundo tal como ele é lhes é apresentado de modo tão natural quanto legítimo.

Agora que vimos como o modo de pensamento estrutural-relacional desemboca na noção de campo e como Bourdieu nesta articula esta última noção com as de habitus, prática e violência simbólica, chegamos, finalmente, no coração de suas múltiplas pesquisas empíricas da produção, circulação e consumo de bens culturais em uma sociedade de classes. Estas pesquisas tomam a forma de uma análise rigorosa dos campos da religião, da educação, dos esportes, da ciência, da filosofia, da arte, da literatura, da economia, da política, do direito, do jornalismo, etc. Estes campos de produção simbólica, tornados relativamente autônomos no curso da história, se situam na parte superior do espaço social (alto volume de capital) e oferecem uma alternativa ao curto-circuito marxista que vincula a base à superestrutura da sociedade de modo direto. Por um duplo movimento que vincula, de um lado, o espaço das obras (monumentos e documentos, textos filosóficos, literários, etc.) com a área da produção de obras (o campo relativamente autônomo) e transforma, de outro, o campo de forças em um campo de lutas, as pesquisas históricas de Bourdieu sobre os múltiplos campos e sub-campos da cultura demostram invariavelmente as estratégias dos agentes e os interesses de poder que visam à conservação ou à transformação da estrutura do campo – ou mesmo de toda a sociedade. Desde os seus primeiros textos sobre Argélia até as suas últimas intervenções no espaço público, Bourdieu não só analisou as posições, disposições e os posicionamentos dos atores sociais, como também assumiu uma posição contra todas as formas de injustiça e de desigualdade social.

Boltanski, L. (2008): Rendre la réalité inacceptable. Paris : Demopolis.

Bourdieu, P. et Passeron, J.C. (1970): La reproduction. Eléments pour une théorie du système de l’enseignement. Paris : Minuit.

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Bourdieu, P. (1979): La distinction. Critique sociale du jugement. Paris : Minuit.

Bourdieu, P. (1980): Le sens pratique. Paris : Minuit.

Bourdieu, P. (1984): Questions de sociologie. Paris : Minuit.

Bourdieu, P. (1987): Choses dites. Paris : Minuit.

Bourdieu, P. (avec Wacquant, L.) (1992): Réponses. Pour une anthropologie réflexive. Paris : Seuil.

Bourdieu, P., éd. (1993): La misère du monde. Paris : Seuil.

Bourdieu, P. (1997): Méditations pascaliennes. Paris : Seuil.

Bourdieu, P. (2004): Esquisse pour une auto-analyse. Paris : Raisons d’agir.

Bourdieu, P. (2015-2016): Sociologie générale. Cours au Collège de France. Vol. 1 (1981-1983) ; vol. 2 (1983-1986). Paris : Seuil.

Calhoun, C., LiPuma, E. et Postone, M., éds. (1993): Bourdieu. Critical Perspectives. Cambridge : Polity Press.

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Pinto, L. (1998): Pierre Bourdieu et la théorie du monde social. Paris : Albin Michel.

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Swartz, D. (1997): Culture and Power. The Sociology of Pierre Bourdieu. Chicago : Chicago University Press.

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