Por: Paulo César Carbonari
A decisão da mais alta Corte de justiça do Brasil sobre a Lei da Anistia (Lei nº 6.683, de 28/08/1979) na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF nº 153/2008) apresentada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), anunciada largamente pela imprensa neste 30 de abril de 2010, envergonha a todos quantos, homens e mulheres, acreditam que a justiça é, acima de tudo, justiça às vítimas.
A retórica pomposa dos votos dos senhores e senhoras ministros/as não foi capaz de esconder o fato de que a decisão tomada por maioria (7 a 2), contra o voto de dois ministros, Ricardo Lewandowski e Ayres Britto, indiretamente autoriza os torturadores de ontem e de hoje a celebrar seus crimes e a permanecer impunes. Contra os mais claros e meridianos valores que protegem a dignidade da pessoa humana, reconhecidos, aliás, nos votos dos senhores/as ministros/as, o Supremo Tribunal Federal (STF) tomou uma decisão que fere a consciência cidadã e envergonha a democracia brasileira.
Como cidadão, cada brasileiro e cada brasileira deve obediência à decisão do STF. Isso, porém, não haveria de significar resignação e submissão acrílica. Por isso é que a consciência pessoal e a consciência dos compromissos constitucionais e internacionais com a promoção e a proteção dos direitos humanos e a condenação de todas as formas de sua violação, que estão acima da decisão de qualquer instância do Estado, por mais suprema que seja, exigem que a sociedade brasileira faça uma profunda reflexão sobre a decisão do STF. A consciência cidadã não está presa ao posicionamento das instituições, sob pena de se ter que admitir a “ditadura democrática das instituições”. Instituições existem para a cidadania e não o contrário. Se posicionamentos institucionais atentam contra a consciência ética e cidadã, resulta à cidadania se insurgir contra eles por meios legítimos e democráticos, entre os quais o debate livre a aberto.
A decisão parece ter sido tomada por razões de conveniência histórica, dado que, em sua maioria, os votos invocaram o acordo histórico que deu luz à Lei da Anistia em pleno regime militar.
Acordos históricos, por mais legítimos que sejam, não podem nunca estar acima da Justiça. Menos ainda razões deste tipo podem ser invocadas quando se trata de julgar algo flagrantemente injusto e que atentata à dignidade humana. Se acordos históricos fossem suficientes para legitimar decisões justas, talvez Nuremberg nunca tivesse sido instalado ou talvez tivesse chegado a resultados diferentes daqueles a que chegou. A história é feita pela dinâmica conflituosa das contradições que marcam a correlação de forças da sociedade. A consciência histórica, mais pautada por julgamento de valor sobre os fatos, está acima da faticidade e lhe serve de parâmetro, de tal maneira que, ao longo da própria história, posições podem ser revisadas, e são, efetivamente à luz dos novos conteúdos da consciência. A consciência histórica é dinâmica e não pode ser “congelada” às conveniências, menos ainda àquelas que não tomam como parâmetro a justiça às vítimas – contra a enfática frase da ministra Cármen Lúcia, que disse: “Não vejo como reinterpretar uma lei, 31 anos depois”. Aliás, questões éticas não estão “para frente”, até porque, os crimes que estavam em análise, não estavam no futuro – mesmo que sua não punição possa ensejar sua perpetração nele.
Escapar do mérito do debate por aspectos formais pode ser razoável no contexto de julgamentos deste tipo, como o fez o relator do processo, ministro Eros Grau, e outros que o acompanharam, ao dizer que não cabe ao STF a tarefa de mudar a lei e sim ao Congresso. Sabe muito bem o ministro que a questão principal proposta pela ADPF não estava centrada na discussão sobre qualquer mudança na Lei da Anistia e sim na interpretação dada a ela. O seu sentido central era entender que crimes contra a humanidade (como a tortura, o desaparecimento forçado, e a eliminação física dos oponentes ao regime militar) não estariam abrigados no texto da Lei da Anistia, à luz da Constituição Federal atual. A rigor, não precisa ser jurista para entender que uma coisa é o texto, outra é a interpretação do texto. Ademais, alegar que o texto foi aprovado pelo Congresso da época e por isso é legítimo, é dar legitimidade a uma instituição claramente comprometida com um dos lados do assunto. O Congresso da época era formado por maioria governista, até porque a oposição foi banida, restando apenas a que era tolerada pelo regime militar. Porém, mais do que saber se o que foi feito à época era ou não constitucional naquele momento é saber se o que foi feito à época continua tendo guarida sob a nova ordem constitucional, aliás foi isso o solicitado pela OAB. Dizer, como fez o ministro Gilmar Mendes (e também, em certo sentido, a ministra Cármen Lúcia), que aceitar o questionamento ao dispositivo da Lei da Anistia proposto na ADPF seria o mesmo que aceitar um questionamento a todo o processo que levou inclusive à Constituição de 1988, insinuando que, caso o STF aprovasse um posicionamento favorável ao pedido da OAB estaria entrando em contradição, pois usaria um texto constitucional que só foi possível, e inclusive só foi legitimado, em razão do texto e do processo que levou à Lei da Anistia que lhe antecedeu é, no mínimo, um absurdo, um contracenso, para dizer o mínimo. Aceita e corrobora, dessa forma, o argumento que tributa a redemocratização do Brasil ao acordo entre as elites, ignorando o povo que foi às ruas exigindo diretas já e que foi traído exatamente por estas elites com a eleição pelo Colégio Eleitoral.
Ainda um comentário sobre um dos votos, o do presidente do STF, ministro Cezar Peluso. Declarou, segundo notícia publicada pelo STF, que “Só o homem perdoa, só uma sociedade superior qualificada pela consciência dos mais elevados sentimentos de humanidade é capaz de perdoar. Porque só uma sociedade que, por ter grandeza, é maior do que os seus inimigos é capaz de sobreviver”. Perdoar é uma atitude adstrita à responsabilidade pessoal na relação com os outros e, acima de tudo, caso não nos traia a memória religiosa, somente a Deus cabe perdoar. Uma corte de justiça não tem nem a incumbência de perdoar a ninguém e nem a crime algum. Ademais só se pode perdoar o que se conhece e o que foi reconhecido como pecado pelo seu autor – o que não é o caso dos crimes de tortura. Ainda, pecados não estão para serem esquecidos e sim para ser declarados e conhecidos, condição inescapável para que possam vir a ser perdoados. Em qualquer hipótese, à Corte cabe fazer Justiça. A resposta a este tema foi dada enfaticamente pelo ministro Ayres Britto quando disse que “Perdão coletivo é falta de memória e de vergonha […]. O torturador é um monstro, um desnaturado, um tarado. Não se pode ter condescendência com um torturador”.
O eminente ministro também disse que a grandeza de uma sociedade está em ser maior do que os seus inimigos. Ora, se seguirmos este raciocínio, todo tipo de crime teria que ser perdoado pela sociedade, sob pena de não exercitar sua grandeza e de não ser coerente com sua consciência elevada de sentimento de humanidade. Aliás, o ministro Lewandowski se encarregou de dizer isso: “Se assim fossem, teríamos casos de pedofilia, estupro e genocídio sendo classificados como meros crimes políticos”. O perdão, mesmo que possa ser concedido por uma sociedade laica, e os sentimentos de humanidade por ela construídos só têm sentido se forem baseados na Justiça, nunca na conveniência.
Mais irritante ainda é ouvir do senhor ministro a tentativa de qualificar todos quantos lutam pela justiça e pela memória das vítimas como enquadrados na mesma posição daqueles a quem combatem. Disse em seu voto que “uma sociedade que queira lutar contra os seus inimigos com as mesmas armas, com os mesmos instrumentos, com os mesmos sentimentos está condenada a um fracasso histórico”. Inaceitável até como insinuação, mais ainda como declaração. Dizer que os que lutam contra o arbítrio e a tortura estariam usando as mesmas armas daqueles a quem combatem é, no mínimo, uma agressão às vítimas, sobrepenalizando-as ao desmoralizá-las e ao desmoralizar seu clamor de justiça.
Enfim, é vergonhoso que a corte suprema não tenha tido a coragem histórica que outras cortes já tiveram. É lamentável que o Brasil continue declarando, por suas instituições, que torturadores não são criminosos e que cometer violações dos direitos humanos foi e continua aceitável, sob certos aspectos e circunstâncias. A consciência ética não pode se calar diante deste tipo de postura e muito menos admitir que a última verdade seja assim tão acintosa.
Fonte: Lista Racial