Vices ambiciosos criam desconfiança, mas Biden precisava de uma mulher que roube a cena

Tal como os brasileiros, os americanos adoram debater a utilidade dos vice-presidentes em ano eleitoral.

Para alguns, o vice-presidente é uma figura irrelevante e até obsoleta, criada para suprir limitações tecnológicas que já foram superadas; para outros, um personagem-chave que pode acabar desenhando sozinho o futuro do país, como tão bem narrou Robert Caro, o superbiógrafo de Lyndon Johnson.

Todos concordam que o impacto da escolha do vice-presidente na campanha é próximo de zero.

As presidenciais são o encontro entre um homem, ou uma mulher, e a nação. Não há espaço para personagens secundários.

Alguns fatos inéditos tornam esta campanha um pouco diferente. Joe Biden, 77, é o mais velho candidato a um primeiro mandato da história da República.

Nas prévias, deu sinais de cansaço, a ponto de alguns comentaristas, como o consagrado Tom Friedman, sugerirem que os debates com o impiedoso Donald Trump deveriam ser contornados ou até evitados.

Qualquer tropeço será imediatamente apresentado como um sinal de confusão e senilidade, numa mera repetição dos truques usados contra Hillary Clinton em 2016.

A pandemia complica a situação de Biden. O senador do Delaware tem passado grande parte dos últimos três meses trancafiado em sua residência.

Se a obrigação do distanciamento social criou um ambiente midiático mais controlado que minimizou o risco de gafes e lapsos, o candidato não terá alternativa senão começar a bater perna depois da Convenção Nacional do partido, agendada para a próxima semana.

É nesse contexto que deve ser examinada a escolha de Kamala Harris. Susan Rice era uma solução de conforto. Sem base política, a antiga chefe do Conselho Nacional de Segurança na era Obama seria uma boa gestora sem grandes ambições políticas.

Numa eleição tradicional, Gretchen Whitmer teria sido a melhor escolha do ponto de vista puramente eleitoral. A popular governadora entregaria de bandeja Michigan, um dos estados mais competitivos.

Mas esta não é uma eleição normal, e Biden precisava de uma vice de combate. Kamala Harris ganhou dimensão nacional ao massacrar o controverso Brett Kavanaugh, indicado de Trump à Suprema Corte.

Apesar de assustadoramente amadora, sua campanha nas prévias consolidou a imagem de uma mulher de palanque que não hesita em avançar contra o inimigo —o próprio Biden sentiu seu poder de retórica na pele durante um dos primeiros debates.

Conhecida por gostar de gastar a sola dos seus tênis Converse, Kamala será pau para toda obra da campanha Biden.

Dos sonolentos debates em salas sem janela com 40 eleitores indecisos de um estado-pêndulo aos eventos televisivos multidimensionais com milhões de espectadores, a candidata a vice estará em todo lado, o tempo todo, dando margem para Biden conduzir uma campanha mais solene e cerimonial.

É o encontro de uma candidata treinada para a era digital e de um candidato acostumado ao ritmo do século passado. Vices ambiciosos costumam criar desconfiança, mas Biden precisava de uma mulher capaz de roubar a cena.

A escolha de Kamala traz os seus riscos. Em sua longa carreira política, a senadora pela Califórnia frequentou algumas figuras pouco recomendáveis, como o ex-prefeito de São Francisco Willie Brown, um personagem digno de um bom Martin Scorcese, enrolado em negócios imobiliários, acusações de corrupção e clientelismo.

No começo dos anos 2000, ele se tornou conhecido por colocar pessoas do seu círculo próximo em posições de poder, inclusive uma jovem e promissora procuradora distrital chamada Kamala Harris.

Material suficiente para a máquina do ódio dos republicanos inundar as redes sociais com todo o tipo de alegações sórdidas. Paralisada pela pandemia, a campanha presidencial acabou de ganhar velocidade e agressividade.

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