A feminista criou o termo “dororidade”, a sororidade que acrescenta à união feminina as dores do racismo
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Há um conceito muito presente no glossário feminista hoje: sororidade. Sua origem remonta à palavra soror, irmã e, a contraponto da fraternidade, entre irmãos, preconiza a irmandade, a solidariedade entre mulheres
Foi durante uma reunião do movimento #partidA Rio que Vilma Piedade, mulher preta – e não negra, conforme delimitou o europeu branco -, feminista e antirracista, percebeu que a sororidade não dava conta das questões raciais com as quais vinha se debruçando há tempos. “Não é sororidade, é dororidade. É uma dor específica, que une todas as mulheres, mas que é agravada pelo racismo, que só a mulher preta, só a juventude preta vai sentir”, afirma. A necessidade em se criar esse novo conceito transformou-se em livro, Dororidade, lançado em novembro de 2017 pela editora Nós.
Vilma explica que o feminismo incorporado no Brasil é, em sua maioria, branco. Só a partir dos anos 1980, que, com maior força, as mulheres negras passaram a expressar que as pautas do movimento não as contemplavam, já que elas estavam localizadas na base da pirâmide social. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), em 2015, no grupo dos 10% mais pobres, 75% eram pardos e negros, apesar de esse grupo representar 54% da população brasileira. “Lugar de fala é um lugar de pertencimento. Eu falo desse lugar como mulher preta, um lugar marcado pela ausência histórica. A cor preta nos marca na escala inferior da sociedade, e, como canta Elza Soares, continua a ser a mais barata do mercado.”
Bebendo, de entre tantas fontes, do pretoguês, grafia criada pela antropóloga Lélia Gonzalez, e da interseccionalidade radiografada por Angela Davis em Mulheres, raça e classe, Piedade aponta para o que entende por feminismo. Um feminismo que precisa promover um diálogo entre as questões de raça, classe, orientação sexual, entre outras, e as questões de gênero sem hierarquiza-las. “Eu quero que haja diálogo, que as várias falas se encontrem. É muito mais importante que o feminismo absorva as diferenças, junte as tradições, o tambor e a ciranda. Jogar esses saberes juntos e escurecer o feminismo em vários tons de pretas.”
CLAUDIA: O que é o feminismo para você?
Vilma Piedade: Eu prefiro sempre entender o feminismo não como uma via de mão única, mas como uma potência e uma força que nos leva à transformação. Bebendo das águas da (filósofa) Marcia Tiburi, a minha discussão é com os vários feminismos. Eu sempre estou na luta pela construção real de um feminismo, uma construção dialógica interseccional. Entendo que o feminismo é capaz de absorver e dialogar com todas as diferenças. É um lugar de várias escutas e de várias falas, cada uma preservando o seu lugar, suas diferenças. É uma potência, é um vir a ser. É um ato, um fazer político de transformação para que as mulheres possam ter uma vida melhor. É uma luta por direitos contra o machismo, contra a misoginia, contra as violências simbólicas, objetivas e subjetivas. Minha luta é por uma discussão que consiga abranger esses vários feminismos e que seja uma prática cotidiana na vida das mulheres.
CLAUDIA: Você lançou, em novembro de 2017, o livro Dororidade, em que afirma que o termo “sororidade” não dá conta, não é suficiente. Por que?
Vilma: Um dos conceitos que ancoram o feminismo, que o firmam e o sustentam é a sororidade. Sororidade vem de “soror”, aquilo que irmana, e as mulheres se irmanam no feminismo. Elas se entrelaçam, se cruzam. Mas como eu trabalho com a questão racial há bastante tempo, nos coletivos feministas que eu participava, mais especificamente, um coletivo de mulheres pretas em que eu participava, esse conceito não contemplava. Existe uma coisa que une todas as mulheres, a dor. Mas se você for ver a mulher preta, a dor dela é agravada pelo racismo, que só a mulher preta, só a juventude preta vai sentir. A mulher preta é muito mais vulnerável à violência ao estupro. O lugar de fala da mulher preta, e eu falo desse lugar, é um lugar marcado pela ausência histórica. A sororidade une, irmana, mas não basta para nós, mulheres pretas. E minha discussão vai muito nesse sentido. De incluir no feminismo os nossos valores civilizatórios do povo preto. Uma democracia feminista, em que convivam vários saberes e diferenças. Não é um apartheid, preto de um lado, branco de outro. Eu quero que haja um diálogo, que as várias falas se encontrem. É muito importante que o feminismo absorva as diferenças, discuta esses pontos de privilégio, entender a branquitude enquanto sistema de privilégio. E pegar elementos da tradição iorubá, por exemplo, para jogar junto, juntar esses saberes, escurecer o feminismo com vários tons de pretas.
CLAUDIA: Entendendo a dificuldade de um feminismo que seja no singular, e que não leve em conta os atravessamentos de raça, classe, orientação sexual… é possível que se crie um chão comum justamente pela diferença?
Vilma: Os vários feminismos se reúnem em uma questão comum, numa luta por direitos. Por um mundo mais sensível, menos racista, menos misógino, menos homofóbico. O grande mote do feminismo, para mim, é essa questão dialógica. E quando eu falo em diálogo é justamente o diálogo com a nossa diferença e com o que é igual em nós. Sempre entendendo o feminismo como ação política de transformação. A gente tem que dialogar com as diferenças, trabalhar com a questão de raça, de classe.