A violência doméstica no Brasil

A mídia tem divulgado alguns dados alarmantes sobre a violência doméstica, dados que dão conta de que “no Brasil, a cada duas horas uma mulher morre vítima de violência doméstica”, que “dez mulheres são vítimas de violência a cada hora”, ou “a cada hora, dez mulheres são vítimas de maus tratos”.

Por Tiago Presser

O histórico de desigualdade entre o sexo masculino e o feminino dá-se, aparentemente, por puro e simples fator biológico, mas se sabe que existem muitas outras formas de diferenciar os sexos. Uma destas formas é o fato de vivermos em uma sociedade que reforça o fato de que o homem é mais forte do que a mulher, em que os papéis sociais são impostos a ambos, evidenciando a dominação masculina e a violência entre os sexos.

Historicamente a mulher é discriminada, o que dá origem à violência, pois ela é vista como um ser frágil, o que impediu que avançasse socialmente ou profissionalmente na mesma proporção do homem (BARBOSA; CAVALCANTI, 2007).  Percebe-se que a mulher sempre foi relegada a um segundo plano, posta em um grau de submissão, discriminação e opressão. Tal opressão é geralmente praticada pelo homem, sendo que se torna mais grave quando cometida no ambiente doméstico e familiar (PORTO, 2012).

Porto (2012) professa que, nas últimas décadas, tem-se dado uma atenção especial aos direitos humanos, sejam eles em coletividades determinadas ou mesmo em interesses particularizados, tendo como exemplo as várias legislações globais, conferências e declarações internacionais. Vale trazer para a presente discussão a Declaração da Conferência dos Direitos Humanos de Viena de 1993, a primeira vez em que apareceu a expressão “direitos humanos da mulher”, redefinindo fronteiras entre o público e o privado, a partir da qual os abusos, estupros e violência doméstica passam a ser interpretados como crimes ofensivos aos direitos humanos.

O Congresso Nacional ratificou em 1984 a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher – CEDAW, iniciando a caminhada no combate à violência doméstica no Brasil, que havia sido aprovada pela ONU em 1979.  A Constituição Federal de 1988 trouxe o princípio da Igualdade entre homens e mulheres, além de estabelecer em seu artigo 226, § 8º, que “o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”.

Posteriormente, para complementar a CEDAW, o Brasil ratificou em 1995 a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, reconhecendo que a violência contra a mulher é uma violação aos direitos humanos e às liberdades fundamentais, sendo uma ofensa à dignidade humana e uma manifestação de relações de poder historicamente desiguais entre homens e mulheres.

Com o intuito de facilitar o acesso das mulheres vítimas de violência doméstica ao Poder Judiciário, o Brasil publicou em 1995 a Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais (Lei 9.099/95), em que  estabeleceu competência para conciliação, julgamento e execução das infrações de menor potencial ofensivo, com as penas de multas e restrição de direitos. A referida lei deixou a critério da vítima a representação ou não contra o agressor; entretanto, como a vítima geralmente era dependente do agressor, e a lei impunha sansões a este, a vítima sofreria novamente, pois, na maioria dos casos, o agressor deveria pagar cestas básicas, o que acarretaria na redução do orçamento familiar. Diante do sentimento de impunidade, as vítimas não queriam denunciar esse tipo de crime, o que banalizou a violência doméstica (ALVES, 2006).

Em 2002, a Lei nº. 10.455 acrescentou o parágrafo único ao artigo 69 da Lei nº. 9.099/95, que criou a possibilidade de o juiz decretar cautelarmente o afastamento do agressor do local de convivência com a vítima de violência doméstica, porém, em virtude da timidez do Judiciário, na prática a referida lei não teve grande impacto protetivo às vítimas. Mais tarde, em 2004, a Lei nº. 10.886 veio para alterar o Código Penal Brasileiro, acrescentando os parágrafos 9º e 10º ao artigo 129, trazendo os crimes de lesão corporal grave, gravíssima e seguida de morte no âmbito das relações domésticas, casos em que a pena é acrescida de um terço.

Ainda em 2004, a reforma do Judiciário trouxe a Emenda Constitucional nº 45/2004, que acrescentou o §3.º ao artigo 5.º da Constituição Federal, ocorrendo a constitucionalização dos tratados e convenções internacionais que versam sobre direitos humanos (DIAS, 2007).

Finalmente em 2006, com o fito de regulamentar o dispositivo constitucional contra a violência doméstica e familiar, e extinguir ou pelo menos minimizar a violência doméstica e familiar contra a mulher, foi publicada a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06).

A mídia tem divulgado alguns dados alarmantes sobre a violência doméstica, dados que dão conta de que “no Brasil, a cada duas horas uma mulher morre vítima de violência doméstica”, que “dez mulheres são vítimas de violência a cada hora”, ou “a cada hora, dez mulheres são vítimas de maus tratos” e outras notícias do gênero.

De janeiro a dezembro de 2012, a Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180), com sede em Brasília – DF, contabilizou 732.468 registros, dados do país, sendo 88.685 relatos de violência. Isso significa que, a cada hora, dez mulheres foram vítimas de maus tratos ao longo do ano passado. Entre os tipos de violência relatados, a física permanece a mais frequente, totalizando 50.236 registros (56%), seguida pela psicológica, com 24.477 (28%); moral, com 10.372 (12%); sexual, com 1.686 (2%); e patrimonial, com 1.426 (2%). Dados indicam ainda que, em 2012, foram computados 430 casos de cárcere privado – mais de um por dia. Em 70% dos casos registrados, o agressor é o companheiro ou o cônjuge da vítima. Acrescentando os demais vínculos afetivos, como ex-marido, namorado e ex-namorado, o número sobe para 89%. Cerca de 10% das denúncias mostram agressões cometidas por parentes, vizinhos, amigos e desconhecidos (SETTI, 2013).

A legislação brasileiraprevê, na Constituição Federal, direitos e garantias fundamentais da pessoa humana, sendo consagrados por este texto legal que traduz as aspirações mais inalienáveis do indivíduo, arrimo de todos os direitos, tutela de todas as liberdades, não deixando dúvidas de que não se carece de qualquer outra legislação, além da que ali se encontra fixada (KUO, 2012).

Conta-se também com o auxílio da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), onde estão previstas as formas de violação aos direitos da criança e adolescente, e as medidas de proteção, mais precisamente, dos artigos 99 a 102 daquele diploma legal. Não se pode deixar de citar, ainda, o Estatuto do Idoso, Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003.

Você viu?: Esta mulher fotografou-se todos os dias durante um ano. O final nos deixa sem palavras

 

 


 

REFERÊNCIAS

BARBOSA, Andresa Wanderley de Gusmão; CAVALCANTI, Stela Valéria Soares de Farias. A constitucionalidade da Lei Maria da Penha. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1497, 7 ago. 2007. Disponível em: <http;//jus2.uol.com.br /doutrina/texto .asp?id=1024903>, Acesso em: 28 mar. 2014.

PORTO, Pedro Rui da Fontoura. Violência doméstica e familiar contra a mulher: análise crítica e sistêmica / Pedro Rui da Fontoura Porto. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007.

RAMOS,André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2014.

ALVES, Fabrício da Mota. Lei Maria da Penha: das discussões à aprovação de uma proposta concreta de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. Jus Navigandi,Terezina, ano 10, n. 1133, 8 ago. 2006. Disponível em: http://jus2.uol. com.br/doutrina/texto.asp?id=8764. Acesso em: 28 mar. 2014.

DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça: A efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

BRASIL. Observatório Brasil da Igualdade de Gênero. Balanço da Central de Atendimento à Mulher – 2006 a 2009. Disponível em: <http ://www .observatorio degenero.gov.br/> Acesso em: 23 maio 2013.

BRASIL. Vade Mecum Saraiva. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

SETTI, Ricardo. A cada hora, 10 mulheres foram vítimas de violência no Brasil em 2012. 2013. Disponível em: < http://veja.abril.com.br/blog/ricardo-setti/tag/violencia-domestica/>. Acesso em: 10 maio 2013.

KUO, Damaris. A violência doméstica e as leis brasileiras. 2012. Disponível em: <http://quebrandoosilencio.org/2012/08/14/a-violencia-domestica-e-as-leis-brasileiras/>. Acesso em: 23 maio 2013.

 

 

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