Violência recorrente e autorizada

Dessa vez, a polícia não revistou três pretos da favela, mas filhos de diplomatas estrangeiros. Assim, a indignação, imperceptível no cotidiano, transbordou a ponto de o Itamaraty se desculpar formalmente

A abordagem de policiais militares aos três adolescentes negros chocou o país, menos pela brutalidade e pelo racismo, mais pela classe social e nacionalidade dos alvos. A violência da PM-RJ – de agentes da lei, Brasil afora – contra jovens negros não é inédita nem rara. Recorrente e autorizada, na verdade. Recém-publicado pelo Ipea, o Atlas da Violência informa que indivíduos criminalizados como traficantes no país são homens (86%), com até 30 anos (72%), pretos ou pardos (68%). Dos réus, 85% foram presos em flagrante, quase oito em dez (76,8%) por PMs. Das 35.531 vítimas de homicídio em 2022, 76,5% tinham pele preta ou parda. Por dia, 62 brasileiros de 15 a 29 anos são assassinados.

As estatísticas constatam o ambiente de violência institucional que cerca jovens e negros. São consistentes a ponto de produzir conceitos. Duas décadas atrás, as pesquisadoras Silvia Ramos e Leonarda Musumeci publicaram a pesquisa “Elemento suspeito: Abordagem policial e discriminação na cidade do Rio de Janeiro”. O padrão que emergiu foi de jovens, homens, negros e pobres (em particular, moradores de favela).

Em 2021, o estudo ganhou nova edição, na esteira da repercussão global do caso George Floyd, negro asfixiado até a morte por um policial branco nos EUA. Dentre 3.500 entrevistados, 39% já tinham sido abordados ao menos uma vez pela polícia. Três em cada quatro eram homens; dois terços, negros. Dos que foram parados mais de dez vezes, 94% eram do sexo masculino; 66% pretos ou pardos; 35% moradores de favelas, 33% de bairros periféricos. No início desta semana, o escritor Jefferson Tenório, negro, 47 anos, autor de “O avesso da pele”, romance vencedor do Prêmio Jabuti, revelou ter sofrido a 16ª abordagem policial.

Os policiais que violentamente interpelaram os cinco adolescentes, três deles negros, numa rua de Ipanema, na quarta-feira, não fizeram nada fora do script. Enxergaram meninos brancos em perigo e seguiram o protocolo. Só que, dessa vez, não revistaram três pretos da favela, da periferia, das quebradas, mas filhos de diplomatas estrangeiros. Assim, a indignação, imperceptível no cotidiano, transbordou a ponto de o Itamaraty se desculpar formalmente com os embaixadores de Gabão, Burkina Faso e Canadá. Vai faltar saliva, se o governo resolver repetir o gesto com familiares de todos os jovens brasileiros arbitrariamente abordados pela polícia.

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