Congolês Denis Mukwege trabalha com atendimento a vítimas de abuso, que seguem crescendo em seu país
Por Lucas Neves, da Folha de S.Paulo
O fim do silêncio de vítimas de estupro representa um avanço no combate à violência contra a mulher, mas é preciso ir além, sobretudo porque cada vez mais crianças são visadas por criminosos.
O apelo é do ginecologista Denis Mukwege, 64, vencedor do Nobel da Paz em 2018. O médico participa do Fronteiras do Pensamento, nesta quarta (21), em São Paulo.
Em 1999, ele criou um hospital na República Democrática do Congo para operar vítimas de mutilações genitais e outras agressões. Mais de 40 mil pessoas já passaram lá.
O país está mergulhado há cerca de dez anos em um conflito entre Exército, milícias e rebeldes em grande parte importado da vizinha Ruanda.
O sr. esteve no Brasil em 2010 para falar sobre o tratamento clínico de vítimas de estupro. Algo mudou desde então?
Houve uma evolução positiva, a imprensa trata cada vez mais desse assunto, dando visibilidade a algo que era tabu 10, 20 anos atrás. É claro que gostaria que fosse mais rápido. O movimento MeToo, a partir de 2017, permitiu colocar ainda mais em evidência o sofrimento muitas vezes silencioso das mulheres.
Qual foi a repercussão do MeToo na região em que o sr. atua?
O problema por lá é a ausência do Estado de Direito. O fato de não haver instauração de processo após a denúncia desestimula as mulheres.
Quando comecei a atender vítimas, elas não queriam dizer que os ferimentos eram em seus órgãos genitais, contavam que tinham sido atingidas por chifres de vacas. Era claro que as agressões haviam sido perpetradas por homens.
Aos poucos, elas começaram a falar mais abertamente, o que nos ajudou a embasar inquéritos e acompanhá-las em tribunais. Hoje, quando esse movimento se torna global, vejo que as congolesas se sentem menos isoladas. O silêncio é a maior arma dos agressores para perpetuar essa prática. Quando ele prevalece, protege o estuprador.
Depois de o sr. receber o Nobel da Paz, aumentou o interesse de governos e empresas em financiar seu projeto?
Recebemos 5 milhões de euros do governo de Luxemburgo para acolher pacientes em condições melhores. Nosso hospital foi concebido para comportar 125 leitos, não esperávamos a catástrofe atual, quando temos 450 leitos.
As condições são muito difíceis. Espero que outros governos e organizações sigam o exemplo de Luxemburgo.
Os casos de estupro têm diminuído na RDC nos últimos anos?
Todos esperam que eu diga que o número caiu. Mas não. Enquanto houver um Estado que continua permitindo estupros, nada vai mudar.
O que é mais chocante é que, de uns anos para cá, o número de crianças agredidas tem crescido constantemente —e isso inclui ataques a bebês. É o resultado do desaparecimento da Justiça nessa região; quando a impunidade é total, o homem não tem limites.
Isso quer dizer que a violência sexual deixa o front de guerra e se dissemina na sociedade como uma metástase. Temos uma geração perdida.
Como combater essa cultura de violência?
Acabar com os grupos armados que atuam no leste do país. São ao menos 150 formações, sem ideologia, que estupram, matam.
O problema é que há muitos no governo, no Exército e na polícia que cometeram crimes de guerra e, em alguns casos, contra a humanidade. Isso segundo um relatório de 2010 das Nações Unidas.
Os nomes dos autores desses atos foram retirados do texto, mas todos sabem quem são. Ninguém incomoda essas pessoas, que continuam a bancar e liderar guerrilhas. Parece que, na RDC, quanto mais se mata, mais prestígio se conquista. Por que o relatório da ONU está engavetado?
O sr. disse em entrevistas que há também um gargalo na educação.
Para educar as pessoas com vistas a uma masculinidade positiva, de respeito às mulheres e não objetificação de seu corpo, é preciso que existam regras. Quando as normas sociais são rompidas, não há recuperação possível.
Em outros países, pode-se falar em “masculinidade positiva” porque a sociedade fiscaliza, faz perguntas. Numa selva sem lei, porém, 50 pessoas podem fazer o mesmo estrago que mil em uma sociedade regulada. Quando não há lei, ninguém acredita no que a educação pode propiciar.
O sr. já sofreu críticas por falar sobre a violência contra mulheres em vez de deixá-las se expressarem por si mesmas?
Já ouvi ressalvas, mas só falo do que vejo. Trata-se de situações que documentei, estudei. Eu estive com centenas, milhares de vítimas. É essa experiência que me credencia. Se eu mantivesse o silêncio diante do que testemunho, seria cúmplice dessa violência.
Com os títulos e as condecorações que tem recebido, sobra tempo para clinicar?
Antes do Nobel, passava 75% do tempo no bloco operatório e acompanhando pacientes. Isso mudou. Preciso me revezar entre a medicina e as turnês para chamar a atenção para a violência contra a mulher. Percebi essa necessidade em 2009 ou 2010, quando operei uma bebê de um ano e meio vítima de abuso, neta de uma mulher que eu já havia tratado.
Quando se chega à segunda ou terceira geração de vítimas, percebe-se que essa situação é insustentável. Não é no bloco operatório que se vai conseguir dar fim ao drama do leste da RDC. Fazer esse chamamento é tão importante quanto operar as vítimas.